Aconteceu comigo recentemente. Há um mês publiquei um artigo chamado “Trump e as Mortes por Desespero”. Não falava sobre tecnologia nem sobre inteligência artificial, mas sobre algo mais profundo: o motivo pelo qual trabalhadores americanos estão morrendo. Não de pobreza, mas de desespero.
Baseei-me no trabalho dos economistas Anne Case e Angus Deaton, que mostraram o crescimento assustador de suicídios, overdoses e alcoolismo entre trabalhadores empregados — gente com casa, salário, rotina — e argumentei que o verdadeiro problema não era econômico, mas existencial. Essas pessoas não haviam perdido renda, mas propósito. Tinham perdido o direito de acordar e apontar para algo e dizer: “Eu fiz isso”.
O que destrói não é a falta de emprego, mas o trabalho sem significado.
Logo depois, fiz alguns comentários públicos sobre como o encanador estaria mais bem posicionado que o analista financeiro num mundo de inteligência artificial. Não porque o encanador é mais inteligente, mas porque o trabalho dele é binário: ou o cano vaza ou não vaza. Já o analista vive de apresentações que ninguém lê.
Então, duas coisas aconteceram que fortaleceram esse argumento de formas inesperadas. Primeiro, Larry Summers — ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos e um dos economistas mais influentes do planeta — começou a falar em “economia essencial”. Summers entendeu algo simples, mas profundo: o problema não é o setor em que você trabalha, e sim se o que você faz é real. O encanador e o analista financeiro não estão no mesmo espectro — estão em mundos diferentes.
A ironia é deliciosa. Summers passou anos criticando as políticas de Trump — tarifas, protecionismo, obsessão com manufatura. Agora admite que trabalho essencial importa. Mas não completa o raciocínio: como você cria trabalho essencial sem reindustrializar? Como você protege encanadores e eletricistas quando a China os sufoca com dumping? Summers viu o problema. Ainda não aceita a solução.
Segundo, Jensen Huang — CEO da Nvidia, a empresa de IA mais valiosa do mundo — disse à revista Fortune que “eletricistas e encanadores serão necessários às centenas de milhares no novo mundo do trabalho”.
Encanadores. A mesma profissão. Quando você escreve algo e um dos homens que estão construindo o futuro da IA diz exatamente a mesma coisa — sem saber que você disse — suas dúvidas desaparecem. Você não tinha certeza. Agora tem.
E aqui está a diferença crucial: Summers olha para trás tentando explicar o que deu errado. Huang constrói o futuro — ele está criando a IA que torna o analista obsoleto enquanto explica por que o encanador se torna mais valioso. Ele não teoriza. Ele causa essa mudança e descreve o que vê.
Na mesma semana, Jeff Bezos afirmou: “Estamos numa bolha — mas é uma bolha do bem”. Ele sabe que as grandes bolhas — ferrovias no século XIX, internet em 2000 — destruíram fortunas, mas deixaram infraestrutura. A bolha atual da IA é “do bem” porque está expondo o que é verdadeiro e o que é teatro. Está revelando quais trabalhos têm substância — e quais sobreviviam apenas da aparência de produtividade.
Quando Bezos chama de “bolha do bem”, ele sabe algo que alguns investidores lendários parecem ter esquecido: nem toda bolha é fraude.
Michael Burry ficou famoso há dezessete anos com um dos traders mais assimétricos de todos os tempos. Ele viu um sistema financeiro construído sobre fraude, em que empréstimos podres eram reembalados como títulos AAA, em que agências de rating eram pagas para mentir, em que alavancagem se empilhava sobre alavancagem sem transparência.
A matemática era brutal. Com alavancagem de 40:1 sobre ativos deteriorando, bastava 10% de queda para explodir toda a estrutura de capital. Burry não apostou contra o mercado — apostou que o sistema estava rotulando veneno como remédio.
Aquilo era 2008. Pré-Dodd-Frank. Um sistema financeiro em que derivativos cresciam sem regulação e bancos escondiam risco fora do balanço.
Hoje, Burry coloca US$ 1,1 bilhão em puts contra Nvidia e Palantir. Mark Mobius prevê correção de 40%.
Mas não há fraude. Não há alavancagem escondida. Quando as big techs gastam US$ 112 bilhões num trimestre em infraestrutura de IA, todo mundo sabe. Quando emitem dívida para financiar data centers, é transparente. Quando a Nvidia negocia a múltiplos elevados, cada investidor pode ver a valuation.
Não são CDOs entupidos de liar loans. São empresas lucrativas, com balanços fortes, construindo infraestrutura real — chips, data centers, software — que já gera ganhos mensuráveis de produtividade.
A ironia: as reformas pós-2008 que corrigiram os problemas que Burry identificou são exatamente o motivo pelo qual sua aposta atual não tem a mesma certeza matemática. Ele está lutando a guerra anterior, procurando fraude num mercado que se tornou radicalmente mais transparente.
Em 2000-2001, as teles gastaram US$ 500 bilhões em fibra óptica que levaram uma década para monetizar. Faliram. Mas a infraestrutura ficou e viabilizou a onda seguinte.
Hoje? O ChatGPT foi lançado em dezembro de 2022. Em meados de 2024, Microsoft, Google e Meta já mostram melhorias de margem, produtos melhores, ROI mensurável. O ciclo de monetização está comprimido dentro do ciclo de investimento.
Pode haver correção de 20-30%? Claro. Mas caro não é fraudulento. Espumoso não é quebrado. Um ajuste de valuation não é um colapso sistêmico.
Ninguém sabe qual será o retorno financeiro da IA — nem quando virá. Nem Bezos, nem Marc Andreessen sabem. Essa incerteza, porém, é o motor da descoberta. Alguns paralisam diante do desconhecido; outros testam tudo até encontrar o que funciona.
Nessa incerteza, Estados Unidos e China jogam com estratégias opostas. A China coordena de cima para baixo, tentando não perder. O governo escolhe vencedores, centraliza decisões, constrói IA “boa o suficiente”. É defensivo.
Os EUA jogam no caos: milhares de empresas testam ideias simultaneamente, sabendo que 90% vão fracassar. É ineficiente, caro, arriscado — mas é assim que se descobre o que ninguém sabe. É o caos produtivo que move a fronteira do possível.
A inteligência artificial está forçando todos a encarar o que é real. O encanador continuará indispensável porque seu trabalho é binário: o cano vaza ou não vaza. Já quem vive de apresentações e reuniões que não produzem nada tangível está em risco — não porque a IA vai roubar o emprego, mas porque vai revelar que esse emprego nunca teve valor real.
Durante décadas, o teatro corporativo sobreviveu porque era impossível provar que era teatro. Agora ficou óbvio. Se a IA faz seu trabalho em dez segundos e de graça, talvez seu trabalho nunca tenha sido essencial.
É o mesmo motivo pelo qual Elon Musk e o encanador sobrevivem. Ambos fazem algo que não pode ser fingido. O foguete decola ou explode. O cano vaza ou não. Trabalhos em que resultado é tudo, e desculpa não vale nada.
Por trás da corrida da IA há outra disputa: energia, cobre, lítio e terras raras. Data centers consomem eletricidade equivalente a dezenas de usinas nucleares. A economia digital depende do mundo físico. O futuro pertence a quem controlar os recursos reais — aqueles que não se criam com código.
Tudo isso está acontecendo mais rápido que nas revoluções anteriores. A eletricidade precisou de décadas. A internet levou 20 anos. A IA já tem infraestrutura instalada. Não depende de fios ou antenas: basta um celular e conexão. Por isso, a transformação pode acontecer em cinco anos — não em 50.
E quem vai sobreviver? Os que fazem trabalho que dá para ver. Os que constroem, consertam, cuidam, produzem algo palpável. Também sobreviverão os que usam IA para ampliar o que é essencial. Mas quem vive de teatro corporativo vai desaparecer.
Há duas apostas historicamente desastrosas: apostar contra os Estados Unidos e apostar contra revoluções tecnológicas genuínas.
O trade de Burry em 2008 não era nenhum dos dois — era uma aposta a favor da realidade contra a ilusão, a favor da matemática contra a fraude. Foi brilhante porque não era contra o progresso — era contra a corrupção.
O trade de hoje é diferente. É uma aposta de que a dominância tecnológica americana está supervalorizada, de que IA é hype, de que os ganhos são ilusórios.
A história sugere que isso está errado.
A Fortaleza Americana não é apenas militar ou financeira — é tecnológica. As empresas americanas têm o capital, o talento, a infraestrutura e o ambiente regulatório para capturar valor desproporcional da IA. A China patina. A Europa não tem players. Os emergentes são usuários, não construtores.
Larry Summers percebeu. Jensen Huang não só percebeu como está construindo essa realidade. O trabalho essencial é o que produz algo real, algo que pode ser visto. O resto era ilusão — até a IA desligar o palco.
No fim, a pergunta certa não é se a IA vai tirar o seu emprego, mas se o que você faz é visível, mensurável, real. Se é, você vai continuar necessário. Se não é, talvez seja hora de aprender algo que realmente exista — porque a IA já faz PowerPoint, e de graça.
A janela está aberta. A questão é: o que você vai fazer enquanto ela ainda estiver?
P.S.: Quando Larry Summers finalmente vê o que você viu um mês antes, não é porque você é mais inteligente. É porque você estava olhando para um lugar diferente. Elite olha para números. Quem sobrevive no caos olha para o que permanece quando números param de fazer sentido. Às vezes, a segunda visão é mais útil que a primeira.
*Walter Maciel Neto é CEO da AZQuest .Autor de “There Will Be Pain” e outros textos sobre Deaths of Despair, resiliência brasileira, e verdades que a elite demora para ver, mas eventualmente não consegue mais ignorar.