Apesar do retrocesso nas políticas climáticas federais sob Donald Trump, os Estados Unidos continuam “no jogo” da transição energética — graças ao protagonismo de estados, cidades e empresas que mantêm viva a ambição do Acordo de Paris. A avaliação é de Nate Hultman, diretor do Center for Global Sustainability da Universidade de Maryland e ex-assessor sênior do Departamento de Estado americano para Ambição Climática.
Em entrevista à VEJA durante a COP30, em Belém, Hultman reconheceu que o país vive “um momento de genuíno desafio”, com reversões de regulações, cortes de financiamento e lentidão na expansão das energias limpas.
“Precisamos ser honestos sobre onde estamos”, disse, lembrando a fala do presidente Lula na abertura da conferência, ao pedir uma ‘COP da verdade’.
“Há um recuo real nas ações nacionais. Tivemos o cancelamento de políticas e a retirada de apoio financeiro para tecnologias limpas. Isso é um desafio concreto para que os EUA atinjam suas metas do Acordo de Paris”, afirmou.
Mas, segundo ele, a estrutura federal americana impede que o governo central “desligue completamente” o motor da transição energética.
“Temos um sistema em que estados, cidades e até condados detêm competências próprias. Muitos desses governos subnacionais continuam trabalhando dentro de suas jurisdições para avançar na economia limpa”, disse.
“Essas ações, mesmo isoladas, estão evitando que os EUA sigam por um caminho pior e nos mantêm mais próximos de uma trajetória de Paris do que muitos imaginam.”
Um país dentro do país
Hultman defende que a coalizão America Is All In — que reúne estados, prefeituras, empresas e instituições — é mais do que um símbolo político.
“É uma coalizão real, baseada em ações concretas. Quando você soma todos os membros — estados, cidades, empresas —, isso representa cerca de 75% do PIB americano. Se fosse um país, seria a segunda maior economia do mundo”, explicou.
Com base em estudos do centro que dirige, Hultman calcula que as ações desses atores podem reduzir as emissões americanas em cerca de 45% até 2035, em relação aos níveis de 2005 e até 55% caso haja “reengajamento federal” após a próxima eleição presidencial.
“Essas iniciativas criam uma base de transição que prepara o terreno para um eventual retorno do governo federal a uma política climática mais ambiciosa”, disse.
“Não são gestos marginais, são medidas substantivas em áreas como energia elétrica, edificações, transporte e gestão de resíduos.”
“O governo está freando o mercado”
Questionado sobre o principal gargalo para a descarbonização da economia americana, Hultman foi direto:
“O obstáculo, neste momento, é o próprio governo nacional, que continua incentivando opções fósseis como turbinas a gás”, criticou.
“Essas tecnologias são mais lentas, caras e poluentes. Estão atrasando um movimento que o mercado já está empurrando — porque as pessoas querem energia acessível, e hoje as fontes limpas são as mais baratas.”
Apesar disso, ele acredita que as forças de mercado e as políticas estaduais continuarão a impulsionar o setor. “Houve um choque pela retirada de investimentos, mas vejo espaço para que, em dois a quatro anos, possamos retomar o ritmo de implantação de tecnologias limpas”, disse.
Diplomacia em tempos de incerteza
Diante das dúvidas sobre a capacidade dos EUA exercerem liderança diplomática na COP30, Hultman defende uma visão mais ampla.
“A diplomacia formal é feita pelo governo nacional, mas o Acordo de Paris é um sistema de cooperação global. E o mundo precisa saber que, mesmo com o cenário político atual, 75% da economia americana ainda reconhece o desafio climático e segue atuando”, afirmou.
“O governo pode mudar, mas não tem poder para desligar toda a ação climática dos Estados Unidos.”
O que medir — e o que esperar
Para avaliar a credibilidade americana até 2030, Hultman sugere olhar para duas métricas: o custo da eletricidade e a trajetória real das emissões.
“A acessibilidade da energia é um tema que importa para os eleitores e pode ser alcançada com solar e eólica. Mas, se for para escolher um só indicador, eu diria: olhem para o emissions trajectory, a curva de emissões”, disse.
Segundo ele, há razões para algum otimismo:
“Os 24 estados que compõem a U.S. Climate Alliance já reduziram suas emissões em 24% desde 2005, enquanto fizeram sua economia crescer 34%. Isso mostra que é possível desacoplar crescimento econômico e poluição.”
Ao final da entrevista, Hultman resumiu a mensagem que gostaria de ver estampada nas manchetes da COP30:
“A liderança de prefeitos e vereadores nos Estados Unidos está entregando muito mais do que as pessoas imaginam — e manterá o país no caminho de transformar sua economia e alcançar o net zero até 2050.”