O que não falta no panteão da história são figuras controversas, daquelas que ganham estatura por um conjunto tão complexo de qualidades que é impossível alojá-las no escaninho do bem ou do mal. A esse vasto rol pertence Sebastião José de Carvalho e Melo, do qual quase todo estudante brasileiro em certa idade já ouviu falar, só que como Marquês de Pombal (1699-1782). Foi homem de grande astúcia, habilidoso na conquista de poder no antigo reino de Portugal, que acabou virando peça central no xadrez luso. Em seu apogeu, não se sabia quem mandava de fato — ele ou dom José I, o monarca em cujo ouvido sussurrava altos conselhos, em geral acolhidos tal e qual queria o marquês. Mas, como nada é tão trivial assim, ao mesmo tempo que tecia costuras para fortalecer a realeza, e a si mesmo, Pombal se deixava influenciar como nenhum outro em solo português pelos ventos do Iluminismo que sopravam da França, contribuindo para reduzir a autoridade do clero e da nobreza e encabeçando uma modernização do país que então teimava em olhar para o passado — ares que mais tarde chegariam ao Brasil Colônia.
Não é segredo que, para atingir seus objetivos, ele usava as armas a seu alcance para atropelar os rivais, mandando prender ou até eliminar quem via como obstáculo, e ia colhendo vantagens pessoais sem disfarce. O aclamado historiador contemporâneo português Pedro Sena-Lino enquadrou-o, não à toa, no bordão “mata, mas faz”. Entre os inimigos que colecionou ao longo da vida, um deles decidiu registrar em livro sórdidas revelações sobre sua trajetória — um documento de raro valor histórico por lançar nova luz sobre o personagem, que acumulava pó no arquivo do Mosteiro de São Bento, em Salvador. Descoberto por uma dupla de filólogos, Rafael Magalhães e Alícia Lose, da Universidade Federal da Bahia, pode ser lido agora por completo na recém-lançada em Portugal Primeira Biografia de Marquês de Pombal, ainda sem edição no Brasil. O volume é resultado de uma epopeia vivida pelos brasileiros que levaram a obra às prateleiras.

Foi em 2010 que, em meio a um incêndio no mosteiro baiano, o manuscrito apareceu, atiçando a curiosidade dos dois filólogos, que se lançaram por anos a fio em uma investigação para identificar sua procedência. “Não tínhamos ideia do ineditismo do material, um relato com tamanha riqueza e precisão de detalhes”, disse a VEJA Rafael. Depois de muita garimpagem, ele e Alícia chegaram ao nome do autor: José de Mendonça, que foi reitor da Universidade de Coimbra antes de ser alçado a cardeal-patriarca de Lisboa nos tempos de Pombal. O texto que agora vem a público elenca com tintas gritantes exemplos de como o marquês — um homem de méritos, segundo o cardeal — também se enredava em tramas bem pouco nobres, tendo sido acusado de abuso de poder e até assassinato. “Ele se manteve no cargo por 26 anos e seis meses com tanta autoridade que mais parecia rei do que empregado”, escreveu Mendonça.
O livro mostra como Pombal fez o que pôde para envernizar a imagem, inclusive deixando que se disseminasse uma fake news sobre sua origem: ele não era de Lisboa, como se acreditava até os dias de hoje, mas da pequenina Vila de Sernancelhe, ao norte do Rio Douro. Diretamente afetado pelas reformas pombalinas que subtraíram poder do clero, ao qual pertencia, o autor da biografia sustenta que os interesses do marquês se sobrepunham aos do reino, porém reconhece as transformações na estrutura administrativa e econômica que encabeçou sob o embalo do ideário iluminista. Passado o terrível terremoto de 1755, ele refez à sua feição o sistema de ensino português, dando caráter secular à Universidade de Coimbra, e incentivou o desenvolvimento comercial e manufatureiro, o que conferiu maior autonomia ao país em relação à Inglaterra. A partir desse ponto, o cardeal passa a traçar o retrato de um déspota que, embora esclarecido, era para lá de intrigueiro e perigoso, fazendo com que o rei “desconfiasse de todos os outros”.

Para lidar com opositores à sua agenda, relata o livro, Pombal fazia uso de “ações marcadas pelo recurso a métodos repressivos, visando tanto culpados como inocentes”. Um caso no qual nunca se mergulhou tão fundo é o do suplício do artista João Batista Pele, injustamente condenado por tentativa de assassinato do marquês e esquartejado em praça pública por ordem do próprio. Também está descrito ali o triste fim dos Távoras, uma das mais importantes famílias da nobreza, que deu de criticá-lo. Aí Pombal os acusou de atentar contra a vida de dom José, e tudo acabou em execução — com o marquês, aliás, se apossando de propriedades do nobre clã. O livro ressalta quão bom de networking ele era, promovendo casamentos lucrativos em sua família, sem nunca esconder a ambição de se fazer “senhor de todo o dinheiro da coroa”.
No Brasil, também deixou sua digital ao expulsar do país os jesuítas, para depois estabelecer por aqui o primeiro sistema de ensino público. É verdade que o marquês injetou gás nos negócios da colônia, permitindo a produção local de têxteis, mas, em paralelo, impôs tão elevados impostos sobre a extração de ouro em Minas Gerais que alimentou ressentimentos, deixando plantado o embrião da Inconfidência Mineira, em 1789. “Apesar de tantas polêmicas, Pombal é uma figura incontornável da história brasileira”, afirma o historiador Paulo Rezzutti. Os bons tempos duraram até 1777, quando a morte de dom José veio seguida da derrocada do marquês. Nas mãos da rainha Maria I, uma devota fervorosa da Igreja, Pombal perdeu os cargos e títulos honoríficos que acumulara, foi exilado e caiu em desgraça. Mas, mesmo após tantos séculos, o controverso personagem segue fazendo história.
Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2025, edição nº 2969