counter O distrito do Ceará que virou uma ‘cidade fantasma’ por conta do terror das facções – Forsething

O distrito do Ceará que virou uma ‘cidade fantasma’ por conta do terror das facções

O distrito de Uiraponga, no município de Morada Nova (CE), era até abril deste ano uma pequena comunidade com pouco mais de 2 000 habitantes no Vale do Jaguari, a cerca de 170 km de Fortaleza, que levava uma vida tranquila típica de localidades rurais no semiárido nordestino. Foi então que desentendimentos crescentes entre criminosos começaram a provocar momentos de tensão no povoado — com ameaças aos moradores, inclusive por meio de mensagens em aplicativos e redes sociais, pichações nas casas, invasões e tiros.

Mas foi em julho que a situação escalou, em meio a seguidas escaramuças, com troca de tiros, entre representantes de duas das principais facções criminosas que atuam no Ceará: a Guardiões do Estado, uma organização criminosa local, e o TCP Cangaço, um braço da facção fluminense Terceiro Comando Puro (TCP), que vem ganhando espaço no Nordeste. O ponto alto do terror foi a execução pública de um homem na praça do vilarejo, que fez com que quase a totalidade dos residentes da localidade batesse em retirada para a sede do município em busca de segurança, deixando casas e lojas fechadas e as ruas desertas.

A prefeitura chegou a reconhecer por meio de um decreto a “situação anormal e emergencial” e cedeu um caminhão para quem quisesse deixar a localidade, além de transferir estudantes para a sede do município. Quatro meses depois, as escolas continuam fechadas, assim como o posto de saúde, a igreja e boa parte do comércio — cerca de cinco famílias, com maioria de idosos, permanecem no distrito. O estado intensificou as patrulhas armadas, instalou um posto da Polícia Militar na escola que estava abandonada e prendeu suspeitos, mas a população ainda não se sentiu segura o suficiente para fazer o retorno.

Uiraponga tem menos de quinze ruas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na região, os moradores sempre ganharam a vida trabalhando em plantações de feijão e milho e na criação de gado, ovelhas e galinhas. Como ocorre em localidades pequenas, praticamente todo mundo se conhece.

Mapa de Uiraponga: pacato distrito atormentado pelo crime organizado
Mapa de Uiraponga: pacato distrito atormentado pelo crime organizadoIBGE/Reprodução

As ameaças começaram depois de José Witals da Silva Nazário, criminoso conhecido pela alcunha de Playboy e que pertencia à Guardiões do Estado, romper com Gilberto de Oliveira Cazuza, apelidado de Mingau, e passar a integrar o TCP Cangaço. Playboy e seu aliado Marcio Jailton da Silva, o Piolho, iniciaram uma guerra com os antigos aliados na tentativa de dominar o território, até então comandado por Mingau. Os dois primeiros já estão presos, e o terceiro está na lista dos mais procurados pelas autoridades locais.

Continua após a publicidade

]Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Ceará, Mingau é descrito como “integrante de organização criminosa com atuação na região do Vale do Jaguaribe, com antecedentes criminais por homicídio e tráfico de drogas”. Há ainda uma observação feita pelas autoridades públicas: “indivíduo de alta periculosidade”. Para se ter uma ideia de como o crime organizado tomou conta da região, despachos judiciais mostram  que os criminosos são responsáveis por “roubos, homicídios e outros crimes na região de Uiraponga, dispondo de armamento pesado, espingarda calibre 12 e dois fuzis”.

O interesse dos criminosos no pequeno vilarejo é por causa da sua localização estratégica, no meio do Vale do Jaguaribe, uma região de quase meio milhão de habitantes, cujas maiores cidades são Aracati (75 mil moradores), a própria Morada Nova (61 mil) e Limoeiro do Norte (59 mil).

A difícil volta para casa

Continua após a publicidade

Mingau: bandido mais procurado do Ceará
Mingau: bandido mais procurado do CearáSecretária de Segurança Pública do Ceará/Reprodução

Moradores de Uiraponga têm relatado às autoridades o desejo de retornar para suas casas com segurança, mas isso ainda não foi possível quase quatro meses após a debandada em massa. Atualmente, eles estão sendo atendidos com cestas básicas e agendamento de pedidos de aluguel social, intermediados pela Defensoria Pública do Ceará com a prefeitura. O distrito continua um território fantasma, com casas, estabelecimentos comerciais, escolas, agência dos Correios e até a pequena igreja local fechados.

Continua após a publicidade

A crise vem sendo acompanhada pelo Ministério Público do Ceará (MP-CE), que afirmou que atua para implementar medidas de proteção da comunidade e de enfrentamento à situação, que resultaram em prisões de suspeitos, instalação de base da Polícia Militar no distrito e envio de tropas do Batalhão de Choque. “O Ministério Público segue trabalhando em conjunto com a Defensoria Pública do Estado, as Polícias Civil e Militar e a prefeitura para garantir a retomada da normalidade dos serviços públicos e a volta dos moradores, além da rigorosa investigação dos crimes registrados no local”, diz.

A Defensoria Pública do Estado do Ceará (DP-CE) informou que o principal anseio da população é a retomada do território com segurança e que, desde então, iniciou uma série de reuniões com a comunidade para verificar os direitos civis que estão sendo violados e mapear as principais dificuldades enfrentadas, em especial, nas áreas de educação, saúde e moradia.

Modus operandi lembra o cangaço

Emulando o que fazia o cangaço – um tipo de banditismo que tomou conta da região entre o final do século XIX e início do século XX –, a expulsão de moradores tem se espalhado pelo Ceará. O episódio de Morada Nova nem é o último. Em setembro, cerca de trinta famílias abandonaram suas casas num vilarejo em Pacatuba (região metropolitana de Fortaleza) na esteira de uma guerra entre o TCP e o Comando Vermelho, que resultou em tiroteios, ações policiais frequentes e o assassinato de um morador que se negou a deixar sua casa.

Entre agosto e novembro deste ano, a polícia do Ceará prendeu 42 suspeitos de envolvimento em ameaças de deslocamento forçado no estado, as últimas relacionadas ao episódio de Pacatuba e em Maranguape, que segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública 2025, é a cidade mais violenta do país, com 79,9 mortes a cada 100 mil habitantes — a taxa nacional é de 18,9.  Segundo a polícia, em Maranguape, além de drogas e armas, foram presos homens com idades entre 20 e 37 anos.

Continua após a publicidade

Pacatuba, na região metropolitana de Fortaleza, onde cerca de trinta famílias tiveram que deixar suas casas por conta de ameaças de facções criminosas
Pacatuba, na região metropolitana de Fortaleza, onde cerca de trinta famílias tiveram que deixar suas casas por conta de ameaças de facções criminosasTV Globo/Reprodução

Ainda de acordo com a polícia, do total de presos, 23 já possuíam antecedentes por diversos crimes. De acordo com a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social, entre janeiro e setembro, 1.851 pessoas foram presas, em flagrante ou por mandado judicial, por integrarem organizações criminosas — um aumento de 87% em relação ao mesmo período do ano passado.

Extorsões, ameaça e morte

Com o avanço das facções no Ceará, também se tornado comum a cobrança de taxas, sob a pena de morte no caso de recusa, como aconteceu com o vendedor de espetinhos Alexandre Roger Lopes, de 23 anos, morto a tiros por bandidos do CV em Itapajé, a 130 quilômetros de Fortaleza, porque se recusou a pagar o novo valor do “imposto do crime”, que havia subido de 400 para 1 000 reais.  “Disseram que jogariam granadas, incendiariam os imóveis e encheriam a nossa cara de bala”, relatou um morador da Vila Peri, em Fortaleza, área dominada pelos Guardiões do Estado.

Até júris tiveram que mudar de comarca por dúvidas quanto à suspeição de seus integrantes, como ocorreu em um julgamento, que mudou de Monsenhor Tabosa para Sobral. “Tratando-se de crime grave, com vítima, inclusive, decapitada, após os disparos de arma de fogo, em local sob o domínio de facção criminosa, em cidade do interior, vê-se que pode ser comprometida a imparcialidade dos jurados, pois é plenamente possível que a organização criminosa exerça influência sobre eles”, decidiu o juiz.

Continua após a publicidade

Reportagem de capa da edição desta semana de VEJA mostra como as facções criminosas têm transformado em reféns parte expressiva da população — segundo levantamento do Datafolha, 19% dos brasileiros dizem morar em territórios controlados por grupos armados.

Publicidade

About admin