Tem-se tornado corriqueiras notícias do avanço do crime organizado em território brasileiro, agora não mais restrito aos morros, comunidades e penitenciárias, mas situado e operando a partir de suntuosos escritórios em centros financeiros, administrativos e políticos.
Prova disso é que temos testemunhado um amalgamento cada vez mais enraizado das organizações criminosas em atividades políticas e econômicas, tais como as recentemente descortinadas envolvendo o setor de combustíveis e a administração de fundos de investimentos no coração do centro financeiro nacional.
É válido concluir, portanto, que desponta do horizonte político um preocupante quadro de formação de um narcoestado em território pátrio, a semelhança de congêneres já bem estabelecidos na América Latina, cujos exemplos mais paradigmáticos são o México, Venezuela e Colômbia.
Veja-se que vários elementos que apontam para a formação de um tal narcoestado dão indicativos do modelo ter encontrado terreno fértil no Brasil, já que se trata de fenômeno umbilicalmente ligado à corrupção política.
Nesse cenário, a relação de retroalimentação mútua entre o narcoestado e a corrupção se dá em inúmeras frentes, sendo uma das mais pronunciadas o financiamento de campanhas políticas para cargos eletivos.
Por intermédio de tal financiamento busca-se influência a ser ulteriormente exercida no seio do Poder Público, seja com a facilitação de suas atividades pelos órgãos de enfrentamento, que se vem enfraquecidos com nomeações políticas para a composição de seus quadros, seja pelo contínuo abrandamento da legislação penal e processual, o que ocorre quer por mudanças legislativas propriamente ditas a tornar menos graves as penas cominadas ou mesmo pela mutação da própria jurisprudência.
Na mesma esteira, a captura de instituições públicas com a infiltração em órgãos do Estado também é elemento que instrumentaliza a busca de vantagens ilícitas características do referido modelo, o que se dá a partir da subversão dos centros de interesses que deveriam legitimar a atuação do poder público, que passa a agir, não mais na defesa do interesse público, mas na defesa de corporações criminosas já bem estabelecidas.
Em outra frente, também a impunidade e a erosão do sistema de justiça são elementos que ancoram tal perversa realidade, já que os interesses que gravitam em torno do crime organizado não encontram uma oposição capaz de fazer frente a tais desafios, tanto pelo sucateamento dos órgãos de persecução, quanto pela captura institucional propriamente dita, ou mesmo pela violência ou ameaça voltada aos agentes incumbidos do enfrentamento.
Desnecessário a esse propósito relembrar que o Brasil já passou por vários episódios em que a ousadia de criminosos demonstrou a não hesitação em desafiar autoridades públicas, bastando mencionar que já convivemos com assassinatos de relevantes autoridades públicas, como Juízes, Promotores de Justiça e Delegados de Polícia, justamente por conta do exercício destemido de suas funções públicas.
A formação de territórios infensos à atuação estatal, fenômeno já bem característico de dadas regiões do Brasil, de igual modo indica um quadro de tolerância estatal a prática de narcotraficantes, a sugerir um inconfessável apoio mútuo do baronato político aos criminosos ali estabelecidos, tudo naturalmente com o escopo de garantir o controle daquele eleitorado e a subsequente vitória em eleições vindouras.
Nesse contexto, o fato é que a corrupção funciona como elemento estabilizador de um narcoestado, já que se cria uma rede de lealdades que substitui o Estado de direito por uma lógica de favores mútuos, sendo a corrupção não apenas um instrumento para a consecução de objetivos ilícitos, mas a própria cola que mantém esse sistema em funcionamento.
Em um tal cenário de corrupção sistêmica, as trocas ilícitas se espraiam por diversos setores públicos, culminando-se com a completa corrosão do princípio republicano da separação de poderes e correlata responsabilidade pública inerente ao exercício de funções públicas, gerando-se um Estado de fachada aparentemente legítimo, mas funcionalmente cooptado pelo crime.
Como corolário, o avanço do narcoestado implica na inequívoca desmoralização do Estado legalmente instituído, já que se dissemina a ideia de uma simbiose parasitária entre o crime e o próprio Poder Público a partir de uma aliança espúria estabelecida entre agentes políticos e criminosos.
A corrupção funciona, portanto, como mecanismo central de conversão de um Estado fragilizado em um narcoestado, atuando de forma a destruir a legitimidade e credibilidade das instituições a partir da criação de uma elite política e econômica dependente do fluxo financeiro do crime.
É dizer, o narcoestado não nasce da ausência do Estado, mas da sua perversão institucional por meio da corrupção, olvidando-se a tutela dos interesses públicos para uma defesa disfarçada e oculta dos interesses privados que gravitam em torno do crime organizado.
Em suma, é o estabelecimento de um Estado dual. De um lado as aparências apontam para um Estado formalmente legal e funcional, enquanto de outro os interesses ilícitos e subterrâneos são os que efetivamente ditam os caminhos públicos trilhados.
Impõe-se, pois, o despertar da consciência coletiva acerca dos perigos que o Brasil vem enfrentando no tocante a um caminho que, se não logo revertido, poderá ter contornos irreversíveis ou dificilmente reversíveis.
Leonardo Bellini de Castro é promotor de Justiça – MPSP e mestre em Direito pela USP.