Governar a cidade de Nova York sempre foi ao mesmo tempo um desafio e uma vitrine — trata-se afinal do centro pulsante do mais poderoso país do mundo, sua metrópole mais rica, que recebe milhões de visitantes todos os anos e tem um PIB superior ao de diversas nações. Neste ano de eleição municipal, eis que emerge de dentro de um Partido Democrata desarticulado e sem rumo um candidato diferente de tudo o que já se viu por lá. Muçulmano praticante, Zohran Mamdani, 34 anos, nasceu em Kampala, capital da Uganda, mudou-se para os Estados Unidos ainda na infância com os pais, imigrantes da Índia, declara-se socialista e, de acordo com todas as pesquisas, deve ser eleito no próximo dia 4 o mais jovem prefeito da cidade em mais de um século. Um prato cheio até para a progressista Nova York.
Hoje deputado estadual, Mamdani lidera com folga sobre seu principal oponente, Andrew Cuomo, cacique democrata que precisou renunciar ao cargo de governador sob acusações de assédio sexual feitas por onze mulheres. Tentando um retorno, ele perdeu para o novato nas primárias e agora segue na disputa como independente, discretamente apoiado pela velha guarda partidária. As pesquisas indicam que o democrata conta com cerca de 45% das intenções de votos, o que o coloca bem à frente de Cuomo, com 30%, e do candidato republicano Curtis Sliwa, que tem 15%.
Ao longo da campanha, Mamdani firmou-se como uma força jovem e renovadora no Partido Democrata, que luta para reaver relevância no cenário nacional. “Inicialmente, com 1% das intenções de voto, ele era visto como um candidato de protesto. Mas partiu para a disputa com duas grandes vantagens: habilidade de organização e domínio das redes sociais”, avalia E.J. Dionne, do think tank americano Brookings Institution. Além de tomar os espaços digitais, dialogando com os jovens no TikTok em vídeos bem-humorados, o político investiu pesado no cadastramento de novos eleitores, sobretudo na faixa da sua idade ou menos, que não pensavam em ir às urnas. “Trata-se de um jovem candidato que se aproxima das comunidades sem medo e que comunica, de forma natural, uma visão que muitas pessoas estão buscando”, diz Christina Greer, professora de ciência política na Universidade Fordham.

Caso efetivamente ganhe a eleição, Mamdani dará força renovada à ala esquerda do Partido Democrata, estridente mas nunca levada muito a sério, capitaneada pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez, 36 anos, e pelo veterano senador Bernie Sanders, 84. “Se os nova-iorquinos se unirem e elegerem Zohran, podemos fazer o mesmo da Califórnia ao Maine”, exagera Sanders, que define a situação como “o pior pesadelo de Donald Trump”. No vácuo de liderança partidária que se formou após a derrota no ano passado, até uma figura impensável como Alexandria Ocasio-Cortez, ou AOC, como é mais conhecida — jovem, mulher, socialista, provocadora —, tem sido citada como possível candidata democrata à Casa Branca em 2028, movimento que pode tirar partido do efeito Mamdani. Por tabela, correndo em uma trilha paralela, também ganha pontos o governador da Califórnia, Gavin Newsom, 58, que procura se apresentar como uma terceira via entre a ala “ultrapassada” do partido e os “radicais” da esquerda. Newsom tem se destacado pela imitação descarada, meio infantil mas divertida, da propaganda trumpista, com postagens em maiúsculas nas redes e venda de quinquilharias, tudo com mensagem anti-Trump.
Nenhuma dessas estrelas em ascensão, entretanto, está no mesmo patamar de Mamdani. Entre as pautas dele estão o congelamento dos aluguéis para os 2 milhões de inquilinos, ônibus grátis, mais creches públicas, aumento gradual do salário mínimo e mercados municipais subsidiados e mais baratos — tudo dentro de seu conceito de maior “acessibilidade”, muito bem recebido pelos eleitores. Para financiar o programa, propõe elevar o imposto corporativo municipal de 9% para 11,5% e instituir uma taxa extra de 2% sobre rendimentos acima de 1 milhão de dólares.
Apoiador da causa palestina, nega ser antissemita, como o acusam, mas não poupa críticas ao governo de Israel e diz que, se Benjamin Netanyahu pisar em Nova York no seu eventual mandato, será preso. Também afirma que não permitirá no município ações da polícia de imigração (ICE) de deportação em massa. As propostas alimentam a ira dos republicanos, que frequentemente associam o candidato — e o Partido Democrata em geral — ao comunismo em meio a ataques nitidamente racistas. O próprio Trump o qualifica de “lunático comunista completo” que “quer destruir Nova York”, prometendo rever financiamentos federais à cidade caso ele seja eleito. Para onde quer que se olhe, o efeito Mamdani está no ar, pronto para se espalhar.
Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2025, edição nº 2968