counter A sedução do panóptico – Forsething

A sedução do panóptico

“Ixi, descongelaram o Roberto!”, dizia uma das quase infinitas piadas de mau gosto sobre um recente show de Roberto Carlos. Roberto está coroa, aos 84, feliz da vida. As piadas eram ofensivas, etaristas, mas ninguém cogitou um processo dizendo que elas feriam a dignidade dos mais velhos. A verdade é que não damos bola. No mar de “identidades” que andam por aí, quais deveríamos proteger? De minha parte, acho que toda ofensa deveria ser abolida. Ao menos, no mundo real. Se for de brincadeirinha, quem sabe. O sujeito cria um personagem e ele brinca de ofender os outros. Um truque? Foi um problema de Flaubert, no século XIX. As indecências de Emma Bovary seriam apenas dela, a personagem, ou Flaubert, o autor, teria culpa no cartório? Ele de fato foi processado e escapou por pouco. Teriam falhado os juízes franceses? No Brasil de hoje, não ligamos para indecências literárias ou piadas sobre idosos. Mas as piadas do Leo Lins não nos escapam. O caso pode ser revertido, mas o debate que se instalou ensina muito sobre o que somos.

O debate diz respeito à lógica do direito fluido que vai ganhando espaço por aqui. A lei antirracismo, de 1989, é uma legislação universalista. Trata de proteger qualquer pessoa injuriada por raça, religião ou origem. Depois, fomos relativizando. Injetando doses de sociologia na interpretação da lei. A “lei antipiada”, de 2023, fala de “grupos minoritários”. Não só quebrou a isonomia e a universalidade da garantia jurídica, como introduziu um latifúndio interpretativo na aplicação do direito. A lei diz que é discriminatório “qualquer tratamento a pessoas ou grupos minoritários que cause constrangimento, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”. Li a frase diversas vezes. A cada leitura, consegui imaginar alguma coisa diferente. Quais seriam exatamente os “grupos minoritários”? O que seria uma “exposição indevida”? E que tipo de tratamento não se daria a “outros grupos”? Leo Lins foi a Santa Catarina fazer piadas com a alemoada. Acharam ofensivo e cancelaram um show. Ninguém mandou prender, talvez porque a dignidade humana do “alemão-batata”, como escutava na infância, vale pouco no “dignômetro” nacional. O ponto é que, assim como eu, nossas autoridades também entenderão muitas coisas com frases daquele tipo. Eu não tenho poder algum. Mas os agentes de Estado têm. Poder sobre nossa liberdade. E é aí que a coisa pega.

A questão crucial não é saber se uma piada sobre tal grupo é ou não desprezível, mas se estamos dispostos a dar ao Estado o poder de definir essas coisas. Muita gente parece acreditar que os critérios para definir o que seja “apropriado” ou mesmo o “verdadeiro humor”, como escutei por estes dias, são autoevidentes. Não são. E é aqui que as coisas se dividem. Para uma parte da sociedade, é algo valioso viver em uma sociedade na qual essas definições fiquem nas mãos dos cidadãos. Algo do tipo: não gosto das piadas do Leo Lins (meu caso), logo não assisto a seus shows. Mas não quero que o Estado tome essa decisão em meu nome. É uma visão de mundo. Mas há outra visão. Pessoas que simpatizam com a ideia de um mundo-panóptico. Com alguém lá na torre dizendo com quem pode ou não fazer graça. Talvez gostem dessa ideia por achar que os donos da torre irão sempre acertar. São duas visões sobre o papel do Estado e o nosso alcance sobre a verdade. Algo que o grande Isaiah Berlin colocaria na conta de seu “pluralismo objetivo”. O conflito entre valores simultaneamente verdadeiros ao mesmo tempo que excludentes entre si, em uma sociedade aberta.

“A autocracia é simples, a liberdade é complicada. Ela é complexa”

A visão “panóptica” é particularmente fascinante. Sua premissa me soa algo como “somos frágeis, logo precisamos de proteção”. Ou ainda: “dado que sua arte e suas brincadeiras me ofendem, você me deve seu silêncio”. Aceitas estas premissas, a pergunta real passa a ser: quantos Leos Lins andam por aí, sob o manto do humor? Como um sujeito desses chegou a subir naquele palco e como podemos evitar que isso aconteça antes que um vídeo daqueles machuque 3 milhões de pessoas? Na prática: por que não a censura prévia? Algo em que até já temos certo know-how. À época da ditadura, Chico Buarque precisava mandar suas letras ao censor para que ele analisasse e colocasse seu carimbo lá. O problema de criar um sistema assim é a complexidade. Um tema óbvio é a definição dos grupos “satirizáveis”. Tempos atrás li sobre um grupo de meninas muito altas que se sentem discriminadas. Sofrem bullying no colégio, chamadas de girafas e tal. A pergunta é simples: pode fazer piada de gurias-girafas? Não seria útil aprovar uma lista dos grupos que podem ser satirizados, talvez no próprio Supremo, para dar segurança jurídica ao humor nacional? Um ranking, quem sabe, de modo que as penas fossem moduladas de acordo com o grupo ofendido. Pode soar estranho, mas é melhor do que tudo ficar ao sabor da interpretação ad hoc de cada autoridade. Uma alternativa é usar a inteligência artificial. Sistema barato e eficiente. Microfones nos teatros, uma IA identificando as piadas danosas, um sinal de alerta às polícias locais e pronto. Quantos crimes não se poderiam evitar? Pode soar meio invasivo, eu sei. Mas quem disse que liberdades são absolutas?

Continua após a publicidade

Confesso ter uma visão distinta, mais ligada àquele primeiro tipo de sociedade. Acho que todos têm um mesmíssimo direito à dignidade. Penso que se alguém acha uma piada repugnante deve evitar aquele teatro, e que, sempre que um poder sobre ideias, humor ou a cultura foi dado ao Estado, terminamos em seletividade e abuso. Reconheço que estas ideias são difíceis. Foi o ponto de Jean-François Revel: a autocracia é simples, a liberdade é complicada. A autocracia é um tipo de atalho. A autoridade vai lá e põe o humorista em cana. Vale o mesmo para quem faz um discurso de ódio ou fake news. Já a liberdade é complexa. É preciso aturar discursos bizarros e acreditar que podemos aprender, agir com bom senso, negociar espaços de privacidade. E mais: saber que não há fórmula perfeita para viver juntos, em um mundo divergente sobre valores. De modo que, entre todas as soluções imperfeitas, a mais prudente ainda é uma aposta na objetividade do direito.

Um dos maiores exemplos dessas ideias foi dado por uma jovem advogada negra, Eleanor Norton, que em 1969 resolveu defender Clarence Brandenburg, um líder da KKK, na Suprema Corte americana. Brandenburg era tipo muito mais asqueroso do que Leo Lins. E não estava fazendo piada nem representando um personagem quando fez o seu discurso racista e abjeto, pelo qual foi processado. Eleanor defendeu os direitos de Brandenburg por uma singela razão: respeitar seu direito à palavra era o modo de preservar um princípio que por sua vez permitia que todos tivéssemos nossos direitos igualmente respeitados. Porque se algum dia deixássemos ao Estado a prerrogativa de decidir o que podemos ou não dizer, seria um pouco como abrir as portas do inferno. Uma dessas que, depois de aberta, é difícil de fechar. Se alguém duvidar, observe a história. Sequer é preciso ir muito longe. Pensar sobre o Brasil dos últimos anos já funciona como uma magnífica lição a este respeito.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Continua após a publicidade

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 13 de junho de 2025, edição nº 2948

Publicidade

About admin