Passados três anos da eleição mais polarizada da história, o Brasil segue no abismo. Pesquisa Genial/Quaest de outubro mostra que 83% dos eleitores consideram que o país está mais dividido, índice pouco abaixo dos 90% registrados logo depois da última eleição. O dado sugere que, embora a campanha eleitoral ressalte as várias diferenças políticas na sociedade brasileira, elas são percebidas pela grande maioria mesmo num ano sem disputa. A polarização se tornou parte do cotidiano.
A pesquisa Genial/Quaest repetiu no Brasil duas perguntas feitas em setembro pela empresa Siena para o jornal The New York Times, e os resultados indicam que o Brasil de Lula da Silva está mais polarizado que os EUA de Donald Trump.
Para 82% dos brasileiros a divisão impede os políticos de resolverem os problemas do país. Apenas 12% acham que eles são capazes. Para comparar: nos EUA, às vésperas do shutdown dos serviços públicos, 64% consideravam a polarização um fator que paralisava o país contra 33% dos que achavam que os políticos podem superar a divisão.
Para 49% dos brasileiros, o governo Lula está gerando mais caos e desorganização e 42% consideram que ele está colocando as coisas em ordem. Nos EUA, 53% responsabilizam Trump pelo caos e 42% pela ordem.
Como seria natural, tanto no Brasil como nos EUA, os que minimizam os efeitos da polarização são os eleitores que ajudaram a eleger os presidentes. Mesmo assim, a percepção de viver num país dividido supera as clivagens de gênero, raça, religião, educação, renda e região.
Este quadro tem efeitos eleitorais diretos. Do mesmo jeito que era ilusória a narrativa do final do primeiro semestre de que Lula estava derrotado e que a direita poderia montar seu ministério, é igualmente tolo imaginar agora que a reeleição já está assegurada.
Uma evidência anedótica dá o tom de como o brasileiro se acostumou à polarização. Quando assumiu o governo de um país rachado ao meio, Lula escolheu como slogan do seu governo a frase “União e Reconstrução”. Em junho, com uma nova política de comunicação, Lula desistiu da união e mudou o slogan: “Do lado do Povo brasileiro”, ecoando o discurso do ‘nós contra eles’. Ninguém reclamou do novo lema.
A divisão entre lulistas e antipetistas segue a mesma de quando escrevi com o cientista político Felipe Nunes o livro “Biografia do Abismo”, como uma fenda que coloca mais de 90% dos brasileiros em um dos lados do espectro político. Como mundos paralelos, esses dois grupos se relacionam e se informam apenas dentro de suas bolhas, reforçando dentro desses ecossistemas as suas opiniões, preconceitos, medos e ódios. É uma polarização diferente daquela dos anos 1990 e 2000, quando havia divergências políticas, mas não o ódio entre o eleitor de A contra o eleitor de B que se assiste no Brasil desde 2018. No livro chamamos este novo estágio de ‘polarização calcificada’, pois como no processo biológico detectamos um engessamento nas duas posições, cada uma mais autocentrada e excludente da outra. Esta calcificação da política segue mais enrijecida três anos depois e vai pautar a eleição do ano que vem.
O Brasil da polarização extrema se aproximou da máxima do controverso clássico Além do Bem e do Mal, do filósofo prussiano Friedrich Nietzsche (1844-1900), “quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne também um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha de volta para dentro de você”. Em Nietzsche, monstro e abismo se confundem. O abismo é o mal a ser enfrentado, mas também é o risco de nos tornamos justamente aquilo que combatemos. O monstro é o outro, mas também pode ser o espelho das nossas atitudes. O abismo que a sociedade brasileira se defronta hoje pode ser a sensação quase niilista de que não existe saída para esse impasse, de que uma reconciliação nacional é impossível. Ou pode ser o grande desafio a ser enfrentado e superado.