Volta o champanhe para a geladeira das esquerdas de todo mundo depois de Javier Miler, desmentindo, mais uma vez, todos os profetas do caos que pretendiam comemorar uma derrocada catastrófica para o presidente nas eleições legislativas e agora estão decepcionados depois da guinada espetacular nas eleições legislativas. O partido que ele criou do nada, no gogó (e na motosserra, desaparecida nessa estação, na mão) conseguiu eleger 93 deputados, apenas três a menos do que o peronismo, agora com novo nome, Força Pátria. Até na província de Buenos Aires, considerada um bastião inexpugnável, o A Liberdade Avança passou raspando à frente dos peronistas, prejudicando, embora obviamente não destruindo, as pretensões presidenciais de seu governador, o popular Axel Kicillof.
A perspectiva de um futuro presidente Kicillof fazia prever que o dólar hoje iria estourar e a abertura dos mercados seria a derrocada para Milei, qu, ao libertar a moeda americana das amarradas do controle cambial, conduziu o processo de forma considerada errada mesmo por economistas simpáticos ao governo..
Se o dólar, a reserva que praticamente está gravada no DNA argentino, batesse em cerca de dois mil pesos, como os mais pessimistas esperavam, possivelmente não haveria jeito a não ser voltar a confiná-lo no curralzinho, com tudo o que implicaria de desmonte do programa ultralibertário de reformas capitalistas. Lembre-se que Milei foi eleito não apenas por ser a encarnação do antiperonismo, mas também por acusar o presidente de centro-direita, Mauricio Macri, com quem hoje mantém uma aliança mutuamente desconfortável, de não ter feito reformas suficientes, sendo obrigado a amarrar de novo o dólar.
O destino da moeda estava ligado à eleição legislativa de ontem, com caráter quase plebiscitário. O resultado mostrou que valeu o investimento de risco e fora do padrão de 20 bilhões em swap de moedas feito pelo governo americano e as duas visitas, sem precedentes, em um mês e meio de Milei aos Estados Unidos. “O povo justificou nossa confiança nele”, elogiou Donald Trump, que havia dito que era de interesse estratégico dar uma força para Milei, mas em troca ele tinha que ganhar a eleição.
Pois ele foi lá, de megafone na mão, e ganhou. Os resultados da eleição para renovar metade dos deputados e um terço dos senadores superam até as previsões otimistas dos mileinaristas, feitas há cerca de dois meses, antes que tudo começasse a dar errado para Milei. O presidente sofreu pancadas sucessivas com a eleição local em Buenos Aires, quando o peronismo venceu com quase catorze pontos de diferença; explodiram denúncias de corrupção; as reservas se exauriram para sustentar o peso e as pesquisas começaram a indicar um resultado catastrófico para Milei. Como sempre estavam erradas – e confirmaram que nunca, jamais, o erro favorece partidos de direita, uma notável coincidência.
INSULTOS CONTROLADOS
‘O resultado eleitoral abrirá uma etapa de mudanças profundas que colocará à prova a liderança e o caráter presidencial; tudo está em revisão, incluindo o programa econômico”, exagerou no La Nación o secretário de Redação Martín Rodríguez Yebra. Estão no jogo para Milei, segundo o analista, “mudar uma grande parte do gabinete e construir alianças com uma parte da oposição que antes desprezava”.
Uma mudança já foi numericamente registrada pelo jornal argentino: Milei parou de proferir ofensas pesadas contra adversários, inclusive as mais constrangedoras, de caráter sexual. Isso demonstra que ele não está amarrado na persona pública que construiu para si mesmo, com um arrojo que parecia beirar a insanidade.
Se deu certo quando foi eleito presidente, não significava que continuaria funcionando depois de, como diz o chavão argentino, sentar-se na cadeira de Rivadavia – mesmo que a poltrona com entalhes em dourado e assento de veludo, usada pelos ocupantes da Casa Rosada, não tenha sido a mesma do primeiro presidente do país, então chamado de Províncias Unidas do Rio da Prata, Bernardino Rivadavia.
Nesse caso, é a narrativa de conta, como Milei conseguiu tão bem comprovar durante sua eleição e as primeiras medidas de extrema austeridade fiscal – exatamente como havia prometido e que foram aprovadas pela maioria dos argentinos na fase inicial.
EXPERIÊNCIA RUINOSA
“O país avançou nas reformas econômicas e na redução do déficit fiscal, embora o processo continue incompleto e a falta de investimentos impeça retomar um caminho de crescimento sustentável”, resumiu Martin Múhleisen, escoladíssimo integrante do Centro de Geoeconomia do Atlantic Council, a instituição conservadora que em setembro passado premiou Milei.
O especialista americano fala do ponto de vista dos economistas com vasos conectantes com a realidade, todos favoráveis ou positivamente impressionados pelos sucessos de Milei (os outros, adeptos do Estado gastador, só torciam por sua derrocada, mesmo que fosse mais uma experiência ruinosa para a Argentina e, em vários sentidos, para o Brasil).
Analisando o dinheirão que os Estados Unidos despejaram para segurar Milei (“Uma intervenção benéfica do Estado ou um temerário ato de favoritismo político?), o ex-funcionário do FMI disse que a supervisão do Fundo é essencial para prover “legitimidade e experiência técnica”, mas só o Departamento do Tesouro tem o peso político necessário “para garantir que os países cumpram suas metas”.
Ou seja, como dizem os adversários de Milei, o presidente argentino está sob tutela dos americanos. Isso é bom ou ruim para o país? Só o controle da inflação já tirou uma enorme fatia de argentinos da pobreza, pois os mais vulneráveis sofrem muito mais quando a moeda degringola. A ajuda americana foi vital, ms agora Milei tem que demonstrar jogo de cintura na política para seguir adiante com seu programa. “Convido a grande maioria dos governadores a discutir novos acordo”, disse ele, na euforia da vitória, mas já pensando mais adiante, na viabilidade da aprovação de novas reformas, essencial para o projeto.
ALTA DRAMATICIDADE
Embora tenha todos os motivos para comemorar, como sempre na Argentina, as hipóteses estão todas em aberto. Mesmo com a surra de votos, não está fora de perspectiva um futuro presidente Kicillof, o ex-ministro da Economia tão prestigiado por Cristina Kirchner (como nos dramalhões, ele agora está em choque com a ala liderada por Máximo Kirchner, o filho da ex-presidente em prisão domiciliar por corrupção).
A Argentina é pródiga em personagens e acontecimentos de alta dramaticidade, mas hoje o que contou foi o sempre emocionante espetáculo do voto nas urnas. A maioria dos argentinos decidiu contrariar os prognósticos das pesquisas e dos analistas, locais e estrangeiros – por causa do apoio de Trump, Milei passou a ser tratado pela maioria da imprensa americana como um caso perdido. Os eleitores decidiram que não. Milei terá mais uma chance.
Entre as mudanças no governo, tem que pensar numa nova composição, mas se livrou das pressões para rifar a própria irmã, Karina Milei. A “boleira”, como dizem os inimigos, entre as coisas publicáveis, porque vendia bolos pelo Instagram, está desandando o governo, já apareceu ligada a três episódios de corrupção sob investigação e leva junto a reputação do irmão.
É desse material que são feitas as tragédias gregas e as letras de tango. Irá Milei arrumar uma nova e menos controvertida função para a irmã que ele venera e o protegia na infância da violência do pai? Ao fundo, toca o bandoneón. Pelo menos, para Milei o baile continua.