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Fisiculturistas e anabolizantes: a anatomia do colapso

Toda semana, um fisiculturista morre. Jovem, forte, belo — e morto. É quase um novo tipo de obituário: mais um coração que para antes dos 40, mais uma história interrompida em meio a aplausos, luzes e hashtags. A indústria fitness, com seu brilho cintilante e discursos de superação, transformou o corpo em mercadoria e o limite humano em marketing. Mas, sem perceber, ela está sendo cúmplice — ainda que involuntária — de uma tragédia silenciosa.

A ciência já grita o que a mídia silencia: usuários de esteroides anabolizantes têm risco quase três vezes maior de infarto e insuficiência cardíaca, risco oito vezes maior de cardiomiopatia, e mortalidade total quase triplicada em relação à população geral. Não é achismo. Está em revistas como Circulation (2025) e European Heart Journal (2025). Está nas necropsias. Está nas lágrimas de mães e pais que enterram filhos “campeões”.

O fisiculturismo moderno deixou de ser esporte para se tornar um experimento bioquímico de alto risco.

No lugar da preparação física, surgiu um laboratório paralelo de fármacos: testosterona em doses suprafisiológicas, trembolona, hormônio do crescimento, insulina, diuréticos potentes e estimuladores adrenérgicos combinados como se fossem suplementos. É uma roleta russa farmacológica, com o agravante de que muitos dos tiros são disparados com receitas médicas — de profissionais que abandonaram a ética em nome da estética.

O Conselho Federal de Medicina e a Anvisa são claros: o uso de hormônios para fins estéticos e de performance é proibido. Ilegal.

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E, no entanto, é tolerado, glamourizado e vendido em cursos que prometem “harmonização metabólica” e “performance hormonal”. Falsas especialidades ensinando falsas evidências a médicos reais, que viram vendedores de uma ilusão perigosa. Cada “protocolo” desses custa caro — em dinheiro, em saúde e, muitas vezes, em vidas.

O corpo “de palco”, esculpido a qualquer custo, tornou-se o novo mito contemporâneo. Mas esse mito está matando seus próprios heróis. É o que chamamos de plausibilidade extrema: não há mistério, não há coincidência. Corações gigantes, hipertrofiados por andrógenos e desidratados por diuréticos, não resistem. É fisiologia básica.

E ainda assim, as redes sociais e programas jornalísticos continuam premiando quem se destrói com curtidas, seguidores e patrocínios.

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O que se esquece é que o colapso não é apenas cardíaco. É também comportamental, hepático, renal e reprodutivo. Os esteroides alteram o cérebro — e com ele, o humor, o impulso e a percepção de si mesmo. Vêm a agressividade, a irritabilidade, a perda de controle, e, depois, o vazio da abstinência. O corpo se adapta, cria tolerância e dependência, e muitos chegam a um ponto em que já não sabem o que é o normal sem hormônios. A testosterona vira muleta emocional. Sem ela, o espelho muda, o humor despenca e o medo de “sumir” toma o lugar da razão. No meio disso, o fígado sofre, os rins falham, a fertilidade desaparece. O que começou como vaidade termina como dependência química travestida de disciplina.

E há um agravante perverso: o acompanhamento médico não garante segurança. Mesmo com exames em dia, o risco continua invisível, porque não há exame capaz de medir o limite entre a vaidade e o colapso. Um dos fisiculturistas que morreram recentemente chegou a postar nas redes sociais o vídeo de sua consulta com o cardiologista, comemorando o “coração de atleta”. Dois dias depois, teve morte súbita. A tragédia é que muitos desses profissionais, com registro médico e jaleco branco, vendem uma falsa expertise, prometendo “uso seguro”, “monitoramento clínico” e “ajuste individualizado”. Mas quando a conduta é errada na essência, não existe dose que torne o veneno seguro. Exame não neutraliza abuso. Acompanhamento não anula ilegalidade. É a medicina transformada em vitrine — e o jaleco, em disfarce.

Há um caminho possível, e ele passa pela valorização do fisiculturismo natural — aquele que respeita o corpo humano, a ciência e a vida. Sem hormônios, sem atalhos, sem enganos. O verdadeiro atleta é o que vence a si mesmo, não o que engana o próprio metabolismo e encurta a sua vida.

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Mas nada mudará se continuarmos tratando o tema como tabu. Precisamos de políticas públicas, campanhas educativas e medidas legais efetivas que coíbam o uso de doses cavalares de hormônios, que fiscalizem a venda irregular e punam quem lucra com a tragédia alheia. E muito, mas muito mesmo, apoio da mídia (não o contrário, fazendo apologia). É hora de tirar a dopagem do pedestal e devolver a saúde ao centro do palco.

O culto ao músculo virou uma epidemia moral e sanitária. Por trás de cada “shape dos sonhos”, há um coração em risco. E por trás de cada morte prematura, há uma sociedade que aplaudiu o caminho errado.

Salvem os fisiculturistas.

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Antes que não sobre ninguém para subir ao palco.

*Clayton Macedo é endocrinologista, coordenador do Núcleo de Endocrinologia do Exercício e do Esporte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM)

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