Que a vacina da covid-19 foi criada para conter um vírus, todo mundo sabe. Mas, aos poucos, a ciência vai descobrindo que ela pode fazer muito mais do que isso. Já se fala, por exemplo, que o imunizante pode ser considerado o “quarto pilar” da prevenção cardiovascular — e agora, um novo estudo publicado na revista Nature sugere que as vacinas de mRNA, como as da Pfizer e da Moderna, também podem ajudar o corpo a potencializar a ação das imunoterapias usadas no tratamento do câncer.
O trabalho, conduzido por cientistas do MD Anderson Cancer Center, da Universidade do Texas, analisou dados de mais de 800 pacientes com câncer de pulmão e 200 com melanoma tratados com bloqueadores de checkpoint imunológico (ICIs, na sigla em inglês), medicamentos que “soltam os freios” do sistema imunológico para que ele volte a atacar o tumor, como o nivolumabe e o ipilimumabe.
Entre os pacientes que receberam uma dose da vacina da covid-19 até 100 dias antes ou depois do início da imunoterapia, o tempo médio de sobrevida saltou de 20 para 37 meses nos casos de câncer de pulmão e de 26 para mais de 36 meses entre os de melanoma. A taxa de sobrevivência em três anos também foi maior: 55,7% entre vacinados, contra 30,8% entre não vacinados. O benefício, vale dizer, foi semelhante com as duas vacinas, Pfizer e Moderna.
“Esse estudo é mais uma vitória da ciência e de seus princípios, especialmente em um momento em que vemos um viés anticientífico se consolidando cada vez mais”, comenta o pneumologista Rodolfo Bacelar, da Comissão de Infecções Respiratórias da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), que não participou da pesquisa. Ele destaca o fato de que os casos incluídos no estudo não eram de fácil tratamento – em sua maioria, eram graves e avançados, com prognósticos limitados. “Ter o dobro de chance de estar vivo após três anos é, sim, um resultado animador”, diz Bacelar.
Importante destacar que os cientistas também verificaram, por meio de 5 mil biópsias, se os resultados se repetiam em outros tipos de câncer — e a resposta foi sim. Já ao analisarem outros imunizantes, como os de gripe, o efeito não se manteve. Ou seja: o ganho de sobrevida parece ser específico das vacinas de mRNA, que funcionam com uma lógica bem diferente das tradicionais. Enquanto as vacinas convencionais usam o vírus inteiro, morto ou enfraquecido, ou apenas fragmentos dele, as vacinas de mRNA carregam uma mensagem genética que ensina nossas células a produzir uma pequena parte do vírus, como a proteína spike da covid-19.
O que explica?
A explicação, segundo os autores, parece estar no tipo de resposta inflamatória provocada pelas vacinas de mRNA. Depois de perceberem o padrão nos relatórios observados, os pesquisadores decidiram testar em modelos animais. Para isso, recriaram em laboratório a vacina de mRNA e aplicaram em camundongos com melanoma e carcinoma pulmonar. E, puf, a causalidade se confirmou, com aumento da sobrevida dos roedores.
Eles observaram que esse tipo de imunizante desencadeia uma forte produção de interferon tipo 1, uma molécula que ativa as células de defesa e as prepara para reconhecer e atacar também células tumorais. Quando essa “reprogramação” do sistema imune ocorre ao mesmo tempo que o uso dos medicamentos conhecidos como bloqueadores de checkpoint, o efeito é potencializado: tumores antes “invisíveis” passam a ser reconhecidos e combatidos pelas células T, responsáveis por eliminar ameaças no organismo. É como se a vacina desse um “empurrão” no sistema imune, ajudando o corpo a perceber que há um inimigo escondido.
Em humanos saudáveis, o grupo também observou alterações relevantes após a vacinação. O nível de interferon chegou a aumentar cerca de 280 vezes em 24 horas, acompanhado de uma ativação transitória das células de defesa e da elevação de PD-L1, uma proteína que serve de marcador de resposta à imunoterapia.
Limitações
Apesar de os resultados serem animadores, há limitações na pesquisa. A principal delas, segundo Bacelar, é que os dados das pessoas com câncer vieram de análises retrospectivas — ou seja, baseadas em casos já ocorridos, a partir de análise de prontuários. Isso significa que há risco de interferência de outros fatores, o que exige a realização de estudos clínicos prospectivos, planejados e controlados, acompanhando todo o processo. Para avançar nesse sentido, os próprios pesquisadores já anunciaram que estão testando a combinação de vacina de mRNA e imunoterapia em um estudo de fase III, a etapa final antes de avaliar se a estratégia pode integrar o tratamento padrão.
Mesmo com essa limitação, o pneumologista vê como mais uma evidência da segurança das vacinas contra a covid-19. “Mais do que isso, ele mostra que a tecnologia das vacinas de mRNA pode ser um caminho promissor para a prevenção e o tratamento de doenças em que o sistema imunológico tem papel central. É um futuro animador”, afirma Bacelar.