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Por que Maria Antonieta foi a rainha da imagem

Ao ser despachada da corte austríaca para Versalhes em 1770, já de casamento marcado com o futuro rei Luís XVI, Maria Antonieta era uma adolescente dada à espontaneidade que, sem traquejo, espantou-se com o rígido manual de códigos que movia o opulento palácio a meia hora de Paris. Mal sabia ela quão bem aprenderia a se movimentar no tabuleiro da poderosa monarquia da França, que inspirava todas as outras na Europa, e o papel que a história lhe reservava. Seu nome é hoje automaticamente associado à folclórica frase que teria sido proferida ao povo faminto às vésperas da Revolução Francesa: “Se não têm pão, comam brioches”. Uma fake news que resistiu firme à passagem do tempo, mas que espelha a visão à época de uma soberana perdulária, descolada da áspera realidade à sua volta. Só que a derradeira rainha francesa, também lembrada por ter se juntado à vala comum dos guilhotinados, exibia muitas outras facetas, como mostra uma recém-inaugurada exposição no museu londrino Victoria & Albert, O Estilo de Maria Antonieta.

A visita promove um passeio por 250 itens expostos pela primeira vez fora de Versalhes, entre roupas, joias e objetos que, em seu conjunto, ajudam a contar a trajetória da monarca que ditou moda e modos no gran siècle, o glorioso século XVIII na França, e segue atiçando a curiosidade contemporânea. Estão ali brilhantes que tentou carregar consigo na malfadada tentativa de fuga do palácio com a revolução em marcha, a lâmina que lhe decepou a cabeça na Place de la Concorde, um vestido de noiva que uma nobre resolveu fazer tal e qual o dela e uma série de outros saídos das pranchetas de pesos-pesados das grandes maisons, como Dior, Chanel e Yves Saint Laurent, exemplares do chamado rococó chic. O curador, Manolo Blahnik, o célebre espanhol que converteu sapatos em objetos de desejo e lançou modelos à la Maria Antonieta, buscou aliar moda e história para jogar nova luz sobre a complexa personagem, que cultivava o visual sem medir gastos e não por acaso foi apelidada de “Madame Déficit”.

NA FICÇÃO - Vivida por Kirsten Dunst no cinema, em 2006: incompreendida
NA FICÇÃO - Vivida por Kirsten Dunst no cinema, em 2006: incompreendidaColumbia Pictures/.

Em uma corte na qual era difícil se infiltrar, alheia às grandes decisões seladas sob os pesados candelabros, a jovem demarcou espaço com looks que rompiam com o padrão e penteados monumentais, uma espécie de arma de soft power. Influenciou assim as nobres rodas e até as massas empobrecidas, que adaptavam as novidades ao bolso. Quando era aguardada em trajes bufantes que escondiam o corpo, dava de aparecer de calça ou vestidos menos armados, como a chemise à la reine, o que ironicamente lhe rendia críticas por se aproximar de um “ideal camponês”. Nada a ver com Versalhes.

Os historiadores costumam dizer que Maria Antonieta já revelava uma moderna percepção do poder da imagem: sabia como poucos mudar o estilo ao sabor das circunstâncias e entendia a moda como ferramenta para se fazer falada e famosa. As aparições estratégicas e o seletivo vazamento de informação sobre como se apresentaria em certa ocasião eram como um hobby. “Ela usou seu guarda-roupa para reforçar a ideia de autoridade e de liberdade individual”, explica Rosanna Naccarato, especialista em design de moda do Senai Cetiqt.

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OLHAR MODERNO - Peças em exibição: releitura feita por grandes grifes
OLHAR MODERNO - Peças em exibição: releitura feita por grandes grifesPeter Kelleher/V&A Museum/.

Ao longo de sua estada em Versalhes, onde morava em um palacete à parte na propriedade, o Petit Trianon, Maria Antonieta recebeu críticas vindas dos mais distintos estratos da sociedade. Para os conservadores, era uma forasteira incômoda, a l’Autrichienne — maliciosa fusão das palavras “austríaca” e “cadela” —, que não tinha o que acrescentar à bem estabelecida elite francesa. Sob o prisma dos republicanos, ali estava a encarnação dos velhos vícios do Antigo Regime, uma “parasita insaciável”, como aparecia nos panfletos, cujos gastos exorbitantes com jardineiro, pintor e cozinheiro insuflavam a ira da multidão pronta para derrubar a Bastilha. Sua costureira particular, aliás, Rose Bertin, foi alçada ao cargo de “ministra da moda”, ganhou projeção internacional e é considerada a primeira a profissionalizar o ofício, plantando, na parceria com a rainha, as bases da alta-costura. Por tudo isso, Maria Antonieta conquistou holofotes, para o bem e para o mal. “A dramaticidade de sua biografia, somada ao contexto em que vivia, a tornaram mais icônica do que várias outras monarcas”, observa o historiador Felipe Goebel.

O passar dos séculos suavizou o julgamento sobre ela e abriu novas frentes de leitura sobre a figura que nunca deixou de ser observada e comentada. Nos anos 1990, seu estilo não apenas ressurgiu repaginado pelas grifes de alta-costura, como vestiu Madonna em uma muitíssimo comentada premiação do MTV Awards. Aí veio o filme Maria Antonieta, de 2006, dirigido por Sofia Coppola e protagonizado por Kirsten Dunst, que a retratou como uma inquieta monarca incompreendida e a consolidou como ícone pop. Até uma ala do feminismo encontrou um ângulo para trazê-la ao presente: por ter conseguido destaque após um matrimônio arranjado aos 14 anos, sofrer pressão para ter filhos que demoraram a chegar e cravar ao seu modo o nome na história, a jovem soberana seria, ela também, feminista. Em 1793, Maria Antonieta tinha 37 anos e da prisão, às margens do Rio Sena, seguiu para a guilhotina, mas não sem pensar no figurino. Foi de branco, cor associada à monarquia, falando para quem quisesse ouvir que os revolucionários haviam lhe tomado a coroa, mas jamais apagariam o seu espírito.

Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2025, edição nº 2966

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