Soa profético que o alerta sobre o uso excessivo da vista, focada em tarefas como leituras prolongadas em ambientes fechados, tenha sido dado na Ásia ainda no século XVII. Naquela época, sábios chineses intuíam que algo de errado podia acontecer com os olhos devido a esse expediente — e que eles precisavam de descanso. De fato, os estudiosos estavam registrando o que viria a ser chamado de miopia, uma alteração marcada pelo alongamento do globo ocular que faz com que as imagens a distância não se formem adequadamente, gerando a falta de nitidez que caracteriza a condição. Embora tenha um fundo genético, o distúrbio ganhou ares pandêmicos com o estilo de vida atual, cercado de telas e com pouca exposição ao ar livre desde a infância. Daí a projeção alarmante da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que, em 2050, metade da população global sofra de algum grau de miopia. Se, por um lado, já se sabe há tempos como corrigir o descompasso visual com óculos e lentes de contato, por outro, só agora a medicina passa a oferecer, com a devida chancela da ciência, artefatos para mitigar a evolução do problema, que, além de embaçar a vista, aumenta o risco de males sérios como glaucoma e descolamento de retina no futuro.
Os especialistas têm notado que, nas últimas décadas, a incidência da alteração vem crescendo mundo afora entre crianças e adolescentes. E a preocupação estourou com o confinamento imposto pela pandemia de covid-19, que deixou os mais jovens em contato constante com tablets e smart-phones a portas fechadas, seja durante as aulas on-line, seja nas horas de lazer. Um estudo feito por universidades da China e de Hong Kong, baseado em dados de mais de 20 500 crianças, documenta que a prevalência da miopia saltou de 24,9% em 2019 para 36,2% em 2021. “As pesquisas internacionais ajudaram a comprovar que, quanto mais crianças e adolescentes olham para perto, mais o olho precisa fazer um esforço de acomodação”, afirma Wilma Lelis, presidente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia. “E a questão é que eles não estão lendo livros, mas ficando mais tempo no celular.”

Apesar de o Brasil não sofrer com índices tão explosivos quanto as nações asiáticas — por aqui, o problema afetaria menos de 10% da população, enquanto em países como Singapura e China a taxa varia de 60% a 80% —, a projeção é de alta incontornável, já a partir dos 3 anos de idade. O motivo está no ambiente em que se vive: centros urbanos com rotinas ultraconectadas. “Antes, as crianças estudavam na escola e brincavam na rua ou no parque. Agora vivem entre telas com uma distância próxima dos olhos”, diz o oftalmologista Rubens Belfort Neto, da Unifesp.
Diante da avalanche de míopes, empresas do ramo de lentes e colírios passaram a investir em soluções que, mais do que corrigir instantaneamente a dificuldade de enxergar longe, também auxiliam a brecar a progressão da miopia. Agora, pesquisas de longo prazo atestam sua eficácia na contenção do problema, especialmente na população mais jovem. O desenvolvimento de lentes para óculos com um conjunto de anéis com pontos elevados, que levam a um jogo preciso de foco e desfoque, tem sido uma das principais apostas no segmento. Em análise apresentada no último encontro da Associação para Pesquisa em Visão e Oftalmologia, cientistas demonstraram que 40% das crianças não tiveram a progressão da miopia em doze meses ao fazer a combinação entre as lentes Miyosmart e um colírio de atropina. Isso não representa a cura, mas a perspectiva de evitar trocas recorrentes de óculos e de ganhar maior liberdade no futuro. “O objetivo atual é desacelerar a progressão. Até porque, ao atingir uma estabilidade e graus menores na vida adulta, o paciente pode se beneficiar de uma cirurgia refrativa”, diz o oftalmologista Celso Cunha, consultor da Hoya Vision Care, fabricante da Miyosmart. No mesmo congresso, foram apresentados trabalhos com a participação de crianças europeias de 6 a 13 anos que usaram a lente Zeiss MyoCare. Em um período de dois anos, a redução no avanço da miopia beneficiou praticamente metade dos voluntários, sendo que os primeiros resultados apareceram seis meses após o início do uso.
Mais recentemente, em outro estudo, desta vez com a lente Essilor Stellest para óculos, médicos chineses avaliaram o impacto da tecnologia em centenas de crianças de 8 a 13 anos. Concluíram que houve queda de 57% no aumento do grau e de 52% no alongamento do olho, em um acompanhamento que durou seis anos. “As crianças têm sua visão corrigida com qualidade e conforto por meio de lentes resistentes que proporcionam segurança durante as atividades do dia a dia”, afirma Renan Oliveira, head de medical affairs da EssilorLuxottica no Brasil. No país, esses recursos já são comercializados. O desafio ainda esbarra no preço. Uma pesquisa em óticas de São Paulo realizada pela reportagem de VEJA mostrou que o custo, apenas da lente, pode chegar facilmente a 1 790 reais.
Apesar desse grande avanço no universo das lentes, ainda não é possível cravar que essas opções devem ser indicadas para todos os casos. “São tecnologias que podem, sim, ajudar, mas ainda não temos dados suficientes para pedir sua entrada na rede pública”, diz Lelis. O que está cristalino é que a preocupação com a miopia não é em vão. Ao crescer, quem convive com ela não só precisa de artifícios óticos para driblá-la como está exposto a maior propensão a glaucoma, catarata e danos à retina devido ao alongamento pronunciado do globo ocular. O uso sensato da tecnologia — com as lentes certas e menos telas coladas aos olhos — sem dúvida poupará dissabores à vista.
Publicado em VEJA de 17 de outubro de 2025, edição nº 2966