Kerri Rawson pertence a um desses grupos super exclusivos do qual ninguém quer fazer parte. É filha de Dennis Rader, o BTK — bind, torture and kill (amarrar, torturar, matar) — um dos assassinos em série mais notórios dos Estados Unidos. Rader assassinou brutalmente ao menos dez pessoas, incluindo crianças, a maioria nos anos 1970. Depois silenciou por décadas, até que, em 2005, recomeçou a se corresponder com a polícia e a imprensa, aparentemente sentindo falta de ser foco de atenção. Foi capturado graças à tecnologia: uma amostra aleatória de DNA o ligou aos crimes. A amostra, ironicamente, surgiu de um exame médico da filha (que na época não teve conhecimento disso) .
O homem que, por tanto tempo, aterrorizou uma cidade era também um funcionário público, presidente do conselho paroquial, casado há décadas e pai presente. Kerri, já adulta e mãe, descobriu que o pai que a ensinara a orar era o mesmo que torturava e matava. Como reconstruir o mundo depois de se dar conta de algo assim? Onde colocar a conexão que ainda se sente por alguém que se revelou capaz do impensável? E, principalmente, como confiar novamente nos próprios instintos e em sua leitura das regras da vida?
Em seu livro, no recente documentário da Netflix (My father, the BTK killer), e em entrevistas, Kerri descreve o que chama de “reconstruir a alma a partir de estilhaços”. Não se trata de perdoar (seria impossível), mas de sobreviver ao colapso de sentido. O que ela viveu não é apenas horror, é a desintegração da própria biografia.
Sue Klebold, mãe de Dylan — um dos adolescentes responsáveis pelo massacre da escola de Columbine — viveu algo semelhante. Seu filho e um amigo foram os responsáveis pela morte de 14 pessoas, a maioria adolescentes e colegas deles. Sue carrega a marca do que o filho fez. Demorou anos para conciliar seu doce filho com o ser cheio de angústia e ódio que promoveu um estrago que reverbera até hoje. Apesar de todas as dificuldades, não mudou de cidade e resolveu encarar a dor de frente. Em seu livro (A mother´s reckoning), fala do luto duplo: o filho que perdeu e o filho que descobriu que nunca conheceu. É uma dor que não tem tamanho, e cuja expressão mais comum é o silêncio.
David Kaczynski viveu outro tipo de colapso. Irmão de Ted Kaczynski, o “Unabomber”, reconheceu o estilo de escrita do manifesto publicado pelo terrorista e avisou o FBI — gesto devastador, de amor fraterno, de responsabilidade moral. Mesmo afastado, David tentou ao longo do tempo retomar o contato com o irmão, aproximou-se das famílias das vítimas, canalizou seu trauma em ativismo ético. Há algo digno e ao mesmo tempo avassalador nesse esforço: a tentativa de não negar o sangue compartilhado, sem permitir que ele defina quem se é.
Essas pessoas – e várias outras, como Gisele Pelicot que foi dopada e estuprada por anos pelo marido e por homens que ele recrutava – também caminharam nesse terreno de escombros interiores. O que essas pessoas têm em comum é a decisão de romper o silêncio, e transformar o inexprimível em palavras. São porta-vozes de uma dor que não cabe em termos usuais, que não alcança “superação completa”. Essas pessoas são também incrivelmente corajosas.
Kerri Rawson, por exemplo, não só se manifesta, se expõe. Também se tornou colaboradora de investigações policiais, ajudando autoridades a examinar diários e escritos do pai, inclusive para identificar possíveis vítimas adicionais e casos antigos que poderiam estar ligados a ele. Aceitou visitá-lo na prisão após muitos anos, enfrentando seu trauma, para obter detalhes de informações que poderiam ajudar nas investigações. O preço disso, todavia, foi brutal. Nas próprias palavras dela, a família “implodiu”. Seu casamento acabou e sua mãe e seu irmão se afastaram completamente. Ao buscar a verdade, ela desencadeou rupturas irreversíveis no tecido mais íntimo de sua vida.
São histórias extremas, mas não estão longe de nós: porque todos, em alguma escala, podemos ter o chão arrancado por uma revelação que destrói nosso sentido de realidade. A traição que muda a leitura de uma relação inteira, o segredo de família que reescreve a infância, o diagnóstico que abala nossa identidade… O que se perde nesses momentos não é apenas o objeto da confiança, é a capacidade de confiar no real. O mundo, por um tempo, parece feito de papel. As explicações lógicas soam quase ofensivas. É um estado de suspensão: a mente busca coerência e o corpo vive em alerta.
Alguns, como Kerri, Sue, David e Gisele transformam essa devastação em propósito, colaborando com investigações, falando publicamente, apoiando pessoas que carregam dores similares. Outros apenas sobrevivem, um dia de cada vez — e isso já é heroico. Não há redenção completa, nem retorno ao que se era. A inocência não volta. A visão de mundo muda para sempre. Mesmo assim, há algo profundamente humano nesse gesto de continuar. Nessa missão de insistir, mesmo quando o passado parece inabitável. Nessa disposição de viver dentro da nova realidade.
Aceitar a atrocidade não é se reconciliar com ela — é, ainda que com os ossos em estilhaços, prosseguir de pé.