Olá a todos.
Nesta coluna quero compartilhar com você, leitor e leitora de VEJA e VEJA Negócios, algumas ideias e reflexões sobre a importância do capitalismo como mola propulsora da criação de valor — e sobre como as finanças, quando guiadas por ética, responsabilidade e princípios ESG, são o principal vetor dessa transformação.
“A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva por um lado a escutar às portas e por outro a descobrir a América.”— Eça de Queiroz
A reflexão de Eça ecoa com força no início do século XXI, quando a humanidade aplica esse mesmo impulso de descoberta à economia, às finanças e à tecnologia. Estamos, novamente, diante de um tempo em que a curiosidade nos move a reconstruir os alicerces do mundo — desta vez, por meio da inovação financeira, da transição verde e da busca por uma economia mais ética e sustentável.
Vivemos uma era de reconstrução silenciosa. A economia mundial passa por uma transformação tão profunda quanto a que marcou a Revolução Industrial ou o surgimento da internet. No centro desse movimento está a tentativa de redesenhar os alicerces do sistema financeiro, tornando-o mais sustentável, mais tecnológico e mais transparente. Essa é a nova arquitetura das finanças globais — um mosaico em que se entrelaçam a transição verde, a política monetária, a digitalização e as exigências ESG (sigla em inglês para ambiente, social e governança) de uma sociedade que cobra coerência entre discurso e prática.
Quando pensamos em finanças, imaginamos bancos, bolsas e corporações. Mas há camadas estruturais que sustentam tudo isso: as infraestruturas de mercado financeiro — sistemas de pagamento, câmaras de compensação, depositários centrais e repositórios de transações. São engrenagens silenciosas que garantem que salários sejam pagos, títulos liquidados e contratos honrados. Sem elas, o sistema global entraria em colapso em questão de horas.
É nessas camadas estruturais que atuam instituições internacionais como o Banco de Compensações Internacionais (Bank for International Settlements – BIS, www.bis.org), o Comitê de Basileia para Supervisão Bancária e a Organização Internacional das Comissões de Valores (International Organization of Securities Commissions – IOSCO, www.iosco.org). Elas definem as regras que, embora técnicas, determinam a estabilidade do crédito e a confiança no dinheiro. O que parece distante da vida cotidiana é, na verdade, o que mantém o cartão funcionando, a conta bancária segura e o financiamento da casa própria possível.
As regras de Basileia, elaboradas no âmbito do BIS desde 1988, são talvez o mais importante conjunto de normas prudenciais da história moderna das finanças. O Acordo de Basileia I estabeleceu que os bancos deveriam manter capital mínimo equivalente a 8% de seus ativos ponderados pelo risco — uma forma de garantir que tivessem reservas para absorver perdas inesperadas. O Basileia II, lançado em 2004, introduziu os “três pilares”: exigência de capital, supervisão regulatória e disciplina de mercado. Já o Basileia III, desenvolvido após a crise de 2008, acrescentou indicadores de liquidez, colchões anticíclicos e limites de alavancagem.
Essas normas não são apenas um exercício técnico. Elas formam a espinha dorsal da confiança financeira global. É graças a elas que os bancos precisam manter liquidez suficiente para enfrentar retiradas em massa, controlar riscos de mercado e registrar operações com transparência. São mecanismos que, no fim das contas, asseguram que a poupança de milhões de pessoas não se perca em crises de confiança.
Mas o cenário mudou. Após o colapso de 2008, duas inovações mudaram o curso da história financeira: as criptomoedas, que propuseram um sistema descentralizado baseado em confiança algorítmica, e as fintechs, que trouxeram agilidade, personalização e inclusão. Ambas desafiaram o modelo bancário tradicional e forçaram reguladores a repensar suas estruturas.
A tokenização de ativos surge, assim, como o elo natural entre esses mundos — o digital e o regulado. Ela combina o espírito inovador das criptos com a segurança institucional das finanças tradicionais. É o caminho que une tecnologia, governança e eficiência, transformando ativos reais — imóveis, contratos, recebíveis — em representações digitais seguras, negociáveis e rastreáveis.
Mas toda revolução traz dilemas. A transição verde, por exemplo, impõe desafios à política monetária. Restrições ao uso de combustíveis fósseis geram choques de oferta, pressionam preços e criam uma inflação de novo tipo — aquela que nasce do esforço coletivo de tornar o planeta sustentável. Combater essa inflação com juros elevados pode frear justamente os investimentos que sustentariam a descarbonização.
É o dilema do nosso tempo: equilibrar estabilidade e inovação. Subir juros demais esfria a economia e encarece o crédito para tecnologias limpas; tolerar inflação demais mina a credibilidade e o poder de compra das famílias. Nesse vácuo, o mercado de capitais assume protagonismo. É ele que define para onde o dinheiro vai.
O avanço dos green bonds, dos fundos ESG e das operações de securitização de créditos de carbono mostra que a poupança global começa a ser redirecionada para financiar a transição. Mas o caminho ainda é irregular. Falta padronização, sobram riscos de greenwashing, e as taxas de juros elevadas reduzem a atratividade dos projetos sustentáveis. O petróleo, por sua vez, continua a ser o obstáculo e o termômetro. Quando o preço do barril sobe, pressiona a inflação e força políticas monetárias mais duras; quando cai, desincentiva investimentos em energia limpa.
Nesse contexto, a inovação financeira precisa se tornar aliada da sustentabilidade. Tesouros Nacionais podem emitir títulos verdes com incentivos fiscais e auditoria independente, mobilizando poupança para o futuro. Um título “Descarboniza+”, por exemplo, com prazos longos e juros atrelados a metas ambientais, seria um símbolo de política fiscal a serviço da transição.
Enquanto isso, a tokenização abre novas fronteiras. Com apoio do Banco Central, da CVM e da B3, o Brasil vem liderando experiências que unem finanças e tecnologia. O Drex, moeda digital brasileira em fase piloto, é o embrião de uma infraestrutura em que pagamentos, liquidação e registro de ativos ocorrem de forma integrada e programável. É o mesmo princípio que o BIS defende em seu conceito de ledger unificado, no qual moedas digitais, tokens e contratos automatizados coexistem num só ambiente.
Essa convergência promete mais liquidez, mais inclusão e menos burocracia. Ativos antes restritos a investidores institucionais — como debêntures, CRIs ou contratos agrícolas — podem ser fracionados e negociados por meio de plataformas seguras, com regras automáticas de pagamento e garantias digitais. O sistema financeiro, nesse novo desenho, deixa de ser um castelo fechado e se transforma em uma rede interconectada, inclusiva e transparente.
Mas inovação sem prudência é um convite à instabilidade. A história mostra que a tecnologia, quando avança mais rápido que a regulação, costuma gerar bolhas e crises. Por isso, o desafio agora é garantir interoperabilidade, segurança cibernética e educação financeira. O FMI (Fundo Monetário Internacional) e a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) alertam que, sem padrões comuns, o mundo digital pode reproduzir os mesmos riscos que Basileia tentou mitigar: fragmentação, liquidez escassa e desconfiança.
A nova arquitetura das finanças globais não é apenas técnica — é ética. ESG não é moda, é compromisso com o futuro. Inovar, agora, significa integrar objetivos econômicos, sociais e ambientais em uma só equação. O sistema financeiro do século XXI será verde, digital e transparente — ou não será estável.
Essa transição exige coordenação entre política fiscal, monetária e regulatória. Bancos centrais, tesouros, bolsas e organismos internacionais precisarão atuar de forma orquestrada, equilibrando prudência e ousadia. Só assim será possível compatibilizar crescimento, estabilidade e sustentabilidade.
A nova arquitetura das finanças globais é, no fundo, uma reconstrução moral e técnica do capitalismo. Ela pede menos opacidade e mais responsabilidade, menos especulação e mais propósito. Exige que governos, empresas e investidores entendam que inovação, quando guiada por princípios, é a força mais poderosa de transformação econômica.
Em Finanças para uma Boa Sociedade, o prêmio Nobel Robert J. Shiller lembra que as finanças, longe de serem um mal necessário, são um instrumento moral da civilização — uma forma de organizar a esperança. Elas financiam sonhos, reduzem riscos e constroem pontes entre o presente e o futuro. “As finanças”, escreve Shiller, “não são sobre dinheiro, mas sobre a gestão dos riscos da vida.” Essa é a essência de uma boa sociedade: usar o capital para ampliar possibilidades humanas, e não para restringi-las.
E, no espírito de Adam Smith, em “Teoria dos Sentimentos Morais”, é preciso lembrar que nenhuma inovação, por mais brilhante, subsiste sem confiança. O progresso econômico nasce não apenas da busca individual por ganhos, mas da capacidade coletiva de agir com empatia, integridade e senso moral. A tecnologia pode acelerar o dinheiro, mas é a confiança que o faz circular. Inovar é indispensável; manter o elo humano, essencial.