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Reavivado por séries e redes sociais, vício em cigarro seduz uma nova geração

Nos anos em que Hollywood ainda ditava o que era ousado, poucos objetos carregavam tanto apelo quanto um cigarro na mão. James Dean, de jaqueta de couro e olhar desafiador, soltou em fumaça o símbolo de rebeldia da década de 1950. E Audrey Hepburn, na pose de Bonequinha de Luxo, transformou a piteira em sinônimo de sofisticação. Foi assim, com alto investimento da indústria e garotos e garotas-propaganda que exalavam charme, que um hábito se popularizou e viciou o mundo. Até que, a partir dos anos 1970, começaram a aparecer as evidências do perigo, acendendo, aos poucos, um movimento de conscientização que se encorparia para deter um dos maiores problemas de saúde pública da humanidade. Por meio de aumentos nos impostos, restrições em publicidade e proibições em certos ambientes, a chama do tabagismo não seria mais a mesma. Só no Brasil, o número de adultos fumantes nas capitais, que beirava 35% em 1989, rondava os 9% em 2023. Seria o fim da fumaça? Definitivamente, não. O cigarro não só voltou a invadir a cena pop, em séries de TV e redes sociais, como, ao atingir a geração Z, de até vinte e tantos anos, conseguiu driblar a resistência e retomar o fôlego. Não se trata da versão eletrônica, também em alta, mas do velho tabaco industrializado e recheado de química em papel.

COOL - Sabrina Carpenter no clipe de Manchild: aura de sexualidade e rebeldia para a juventude
COOL - Sabrina Carpenter no clipe de Manchild: aura de sexualidade e rebeldia para a juventude@sabrinacarpenter/Instagram

Ainda em 2024, o Ministério da Saúde registrou o primeiro crescimento nas taxas de tabagismo em duas décadas. Depois de anos colhendo a vitória das campanhas e leis antifumo, a curva do índice de fumantes adultos mudou de direção e bateu a marca de 11% da população, um aumento relativo de 25% em apenas um ano. Embora o dado contemple também os vapes, técnicos da pasta alertam para uma intensa reaproximação dos mais jovens com o cigarro tradicional. Algo já visualizado nos Estados Unidos, onde o aumento na venda dos maços reverteu uma série histórica de vinte anos em queda livre. O alerta é global, como reforça um novo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), que revela que uma em cada cinco pessoas no planeta ainda é dependente de tabaco.

O fato é que o cigarro de papel, antes símbolo de um passado a ser superado, voltou a aparecer como acessório de moda em filmes, séries, passarelas e redes sociais. Zendaya fuma em Euphoria; Jacob Elordi repete a cena em Salt­burn; Lady Gaga posa com cigarro no clipe de Die with a Smile. Charli XCX, uma das referências da juventude, ganhou de presente um buquê de cigarros de uma amiga. No Instagram, perfis dos chamados “cigfluencers” colecionam fotos de jovens glamourosos com Marl­boro em mãos, enquanto em semanas de moda, como a de Nova York, modelos cruzam a passarela soltando fumaça. No Brasil, como de costume, influenciadores replicam a estética em posts que circulam sem restrição.

MODA PREOCUPANTE - A onda do vape: a versão eletrônica puxou o aumento na adesão ao tabaco
MODA PREOCUPANTE - A onda do vape: a versão eletrônica puxou o aumento na adesão ao tabacoiStock/Getty Images
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É um terreno fértil para a propaganda indireta que a legislação pensava ter enterrado — um cenário já denunciado por uma pesquisa americana que documentou a exposição alarmante de jovens a estratégias de marketing digital da indústria do tabaco em 119 países. “O que se observa até agora é um movimento muito mais estético do que um hábito em si”, afirma a psicóloga Ilana Pinsky, especialista em dependências e ex-consultora da OMS. Só que até nisso o cigarro revive sua fama de transgressor. “Hoje a juventude cresce ouvindo sobre a necessidade de ser saudável. Nada soa mais subversivo do que fumar”, diz Pinsky. O problema é que a nicotina incrustada nos tubos de papel tem alto poder viciante. O que era uma cena, uma brincadeira ou um protesto pode acabar em doença.

O recrudescimento do tabagismo no Brasil e no mundo, insuflado pelos e-cigarettes e agora fortalecido pelas versões clássicas, coloca em discussão não só a necessidade de novas campanhas de sensibilização como o imperativo de investigar os vínculos e a publicidade indireta financiada pela indústria do tabaco no cinema, na TV e na internet. Um estudo da Universidade Stanford, nos EUA, mostrou que as empresas do ramo pagavam estrelas para fumar em filmes desde os anos 1920. Tudo indica que a prática continua viva. A mobilização de especialistas e autoridades, no entanto, já começou. A causa se justifica: a estimativa é que o vício mate globalmente 8 milhões de pessoas por ano. Só o Brasil gasta 153 bilhões de reais anuais em atendimento para as vítimas no SUS. Para ajudar a reverter essa tendência de impacto sanitário, econômico e ambiental, o governo federal anunciou um reajuste de 21% no imposto sobre o cigarro. Mas outras táticas terão de vir a lume. Do contrário, a imagem de rebeldia e charme do tabaco, no feed e na vida real, pode apagar anos de uma batalha em prol da saúde pública.

Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2025, edição nº 2965

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