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Afetos flexíveis

Não sou bom fisionomista. Com essa dança de penteados, cortes e cores de cabelos, muitas vezes não reconheço quem deveria reconhecer. Ou pior, “reconheço” alguém a quem nunca fui apresentado. Inicio uma conversa íntima para depois descobrir, horrorizado, que me enganei de pessoa. Nessas situações, o ideal seria a franqueza: “Sou ruinzinho de memória, muitas vezes esqueço do nome, mas o afeto é para sempre”. O problema é que não há ser humano na face da Terra capaz de aceitar essa resposta: “Se gosta, por que não lembra? Não lembra de mousse de chocolate, sorvete de limão?”. É claro, gosto e lembro. Então por que não da Lourdes, que foi vizinha da sua mãe quando você morava em Bernardino de Campos, até os 3 anos de idade? Claro, eu adorava a Lourdes. Lembro de seu nome com uma sensação de calor no peito. Mas não exatamente de seu rosto juvenil, principalmente porque só a revi depois de se tornar uma senhora idosa. Mesmo gostando da pessoa, esqueço nome, traços e, quando me vejo diante dela, dá um branco. Para mim, tudo bem se alguém não se lembra de quem sou. Uma vez fui a Bernardino de Campos, cidade onde nasci. Estava andando na rua quando um homem gritou meu nome e disse: “Sou seu primo”. Em segundo grau, mas era, sim. Ele convidou: “Venha até minha casa, minha mãe, sua tia, faz questão de ver você”. Concordei, e lá fomos. No caminho, contou que ela sofria de depressão e tomava remédios potentes. Um fiozinho de terror borbulhou na minha barriga. Corajosamente, continuei até sua casa. Na sala, ele explicou que seria preciso acordar a mãe, porque ela queria muito me ver, mas estava dormindo. Respirei fundo e fui com ele até o quarto. Uma senhora idosa estava encolhida na cama. Ele a sacudiu: “Mãe, mãe, é o Walcyr, a senhora não queria ver o Walcyr?”. Tentei amenizar: “Ela está dormindo, posso voltar outra hora”. Mas ele a sacudiu novamente: “Mãe, é o Walcyr, não queria ver o Walcyr?”. A velha abriu os olhos, e ele deu uma nova sacudida: “Olha o Walcyr”. E, para mim: “Ela estava louca pra te ver”. Eu, cada vez mais desconfiado de tanta vontade. Mas, enfim, ela fixou os olhos no filho e perguntou: “Quem é você?”. Rapidamente, eu insisti que seria melhor aguardar outra oportunidade. Ele se convenceu. “Mas outro dia…”. E eu: “Sim, sim, outro dia…”.

“É possível gostar e desgostar de uma mesma pessoa, em momentos diferentes da vida. Portanto, relaxe”

Isso não significa que ela nunca gostou de mim. Mas gostou de mim criança, não tinha ideia de quem era aquele marmanjo sentado em seu quarto. A gente gosta e desgosta das pessoas ao longo da vida. Há quem realmente esteja disposto a espalhar seu afeto para todo mundo, todo o tempo. A maioria, como eu, escolhe. O bom dessas escolhas é que podem ser feitas e refeitas ao longo da vida. É possível gostar e desgostar de uma mesma pessoa, em momentos diferentes. Portanto, relaxe. O antipático de hoje pode abrir um sorriso no rosto amanhã. Pasme, descobrir qualidades que você nem sabe que tem. Aceitar a flexibilidade dos afetos é uma forma de sabedoria. E de viver melhor.

Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2025, edição nº 2965

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