Nesta sexta-feira, 10, 4º Festival Literário do Museu Judaico em São Paulo sediou um encontro de peso entre duas gigantes das artes gráficas: a cartunista brasileira Laerte Coutinho e a quadrinista israelense Rutu Modan, autora dos premiados Exit Wounds (2007, inédito no Brasil) e A Propriedade (2013), e do recente Túneis (2023) — os dois últimos publicados pela WMF Martins Fontes. A mesa de debate, intitulada sugestivamente “Quer que eu desenhe?”, explorou os cruzamentos entre ilustração, sátira e política, discutindo o papel da arte em tempos de crise, dentro e fora dos quadrinhos.
Modan, que cresceu em Jerusalém e relatou ter vivido a infância em um bairro dentro de um hospital, com o ambiente da guerra permeando sua realidade desde cedo, destacou como o ato de desenhar histórias foi uma expressão natural desde a juventude. Sua visão sobre o ofício evoluiu, vendo o quadrinho hoje como um meio capaz de contar qualquer história e criar mundos absorventes, tal como o cinema.
“Eu gosto do ritmo dos filmes, quero que meus quadrinhos tenham esse mesmo ritmo”, disse ela, em reposta a uma observação de Laerte sobre a característica cinematográfica de seus quadrinhos. “Quero que as pessoas esqueçam os desenhos e creditem que aquilo é real, como num filme.”
A discussão ganhou profundidade ao abordar o papel da arte e da sátira em momentos de intenso conflito. “O humor é diferente da comicidade, não depende de você dar gargalhada”, disse Laerte. “O humor é um modo de lidar com a realidade e a criação.”
Modan enfatizou que o humor está entranhado em seu trabalho e em sua vida, sendo um mecanismo de defesa e uma forma de lidar e enxergar o mundo. Contudo, ela revelou a dificuldade de criar diante da realidade atual, chegando a perder o senso de humor por seis semanas após a eclosão da guerra mais recente, dois anos antes, sentindo-se “traumatizada”.

Essa paralisia criativa refletiu a ausência de uma linguagem adequada para expressar a realidade. Ela observou que a demanda por posicionamento político é intensa, com leitores e pessoas nas mídias sociais pressionando: “Eu li seu livro, agora estou desapontado… por que você não fala?”. Modan é firme ao rejeitar que lhe digam o que escrever e como se expressar, defendendo sua liberdade como artista: “A última coisa que eu aceito é que as pessoas me digam o que fazer. É por isso que me tornei artista”.
A quadrinista israelense também abordou o boicote que sofreu por parte Bienal de Quadrinhos de Curitiba. A artista havia sido convidada a participar do evento, que ocorreu em setembro, mas acabou sendo “desconvidada” por pressão de grupos e ativistas pró-Palestina. Embora compreenda que as pessoas que promovem o boicote desejam influenciar e gerar mudanças, ela não o aceita. Para Modan, a arte e a ciência servem para conectar a humanidade e a comunicação é a coisa mais importante. Ela classificou como “estúpido” boicotar alguém apenas por vir de um determinado lugar.
A dificuldade de expressar a realidade em sua complexidade culminou em um momento de profundo desânimo. Após escrever um diário sobre a recente guerra e começar a trabalhar em um novo álbum baseado nele, buscando ser “muito honesta,” tanto seu agente em Nova York quanto seu tradutor (um ex-israelense que “odeia Israel”) a desaconselharam fortemente a publicá-lo. O conselho foi direto: “Não faça isso. Não se atreva a fazer isso”. A experiência a fez sentir: “Ninguém quer te ouvir”.
Diante do desânimo, Modan suspendeu o projeto político e, pela primeira vez, dedicou-se a quadrinhos infantis, uma forma de garantir que as crianças “têm o direito de ser felizes ou ler histórias engraçadas”. Ela enfatizou, contudo, a importância da arte em prover resiliência.