Durante o processo de escrita de Torto Arado, sucesso contemporâneo que já vendeu mais de 1 milhão de cópias, ficou claro para o escritor baiano Itamar Vieira Jr. que ele tinha mais coisas a dizer ainda do que as 264 páginas do romance permitiam. “Quando comecei a escrever Torto Arado, eu não tinha noção de que seria uma trilogia. Mas, durante a escrita, eu vi que não conseguiria dar conta de tudo aquilo que eu queria expressar”, diz o autor a VEJA.
O que começou como uma inquietação se transformou em três universos complexos e particulares permeados pela questão da terra, no que o autor chamou de Trilogia da Terra. No primeiro livro, Torto Arado (Todavia, 2019), o palco é a região da Chapada Diamantina, na Bahia, e sua narrativa contempla as nuances do sofrimento do povo brasileiro e da riqueza de seu sincretismo religioso e cultural.
Em Salvar o Fogo (Todavia, 2023), segundo volume, o cenário é um mosteiro abandonado no recôncavo baiano e a relação de uma personagem marginalizada pela sociedade com uma criança órfã de mãe do povoado. No recém-lançado Coração Sem Medo (Todavia, 2025), o retrato da vida interiorana dá lugar à vida na cidade, que também se revela como local de inúmeras disputas territoriais: “Uma parcela significativa da cidade precisa habitar áreas conflagradas pelo crime organizado, mas que também são atravessadas por uma violência estatal”, afirma Itamar, já revelando parte do drama que acomete sua nova protagonista, Rita Preta.

Rita Preta é mãe solo de três filhos, moradora da periferia e funcionária em um supermercado que funciona sob jornadas exaustivas de trabalho. Logo nos primeiros capítulos da obra, a vida de Rita é atravessada pelo sumiço do filho mais velho Cid, um adolescente que desapareceu após uma sucessão de brigas com a mãe. Rita Preta, cercada pela solidão, enfrenta ao mesmo tempo o medo pela ausência do filho, a negligência do estado em solucionar o desaparecimento, a burocracia e a falta de acolhimento em um momento de fragilidade e a possibilidade de Cid ter sido vítima de violência estrutural.
O livro conecta personagens do passado ao presente, contando a história de gerações marcadas pelo legado colonial e o modo de vida escravista. Rita Preta, não por acaso, é descendente de Donana, a curandeira e parteira de Torto Arado. Confira, a seguir, a conversa de VEJA com Itamar Vieira Jr sobre o fechamento da Trilogia da Terra:
O livro começa e se passa inicialmente no ambiente urbano, um pouco diferente dos outros livros da trilogia. Qual a interpretação que você faz da cidade dentro desse conceito da terra? Este último volume encerra com aqueles que foram completamente desterrados e que precisaram migrar para a cidade. Mas mesmo na cidade, a terra e o território continuam em disputa, pela precarização das moradias, por exemplo. Uma parcela significativa da cidade precisa habitar áreas conflagradas pelo crime organizado, mas que também são atravessadas por uma violência que é estatal. O corpo que também é território e está em disputa. Quem tem direito de viver e de morrer na cidade? Essa é a direção para onde a história caminha no desfecho da trilogia.
Então, esses conflitos, embora se passem em ambientes completamente diferentes, teriam a gênese ou as mesmas características? Sim, é inegável que têm a mesma gênese. Nos três romances estamos, de alguma maneira, pensando a partir da vida das personagens a gente desse microcosmo da família, o legado colonial e escravista que o Brasil precisa enfrentar e que atravessa de uma maneira muito contundente a vida de todas as pessoas. É essa a questão. Seja no campo ou na cidade, a violência existe e persiste, porque ainda não soubemos como romper com esse passado colonial e escravista.
Como isso aparece em Coração Sem Medo? A gente tem a personagem Rita Preta, que é descendente da dona Ana Chapéu Grande, a matriarca de Torto Arado, avó de Bibiana. E Rita Preta foi levada para trabalhar na cidade aos 12 anos. Quantas meninas viveram isso ao longo do século XX, sendo retiradas de suas casas para trabalhar na cidade com 12, 13, 14 anos? Quando a história começa, ela já rompeu com tudo isso. Ela já é mãe de três filhos e trabalha num supermercado, mas ainda assim continua vítima dessa violência estrutural. Por ser mulher e por ser negra, ela habita os limites da cidade, onde o crime conflagrou, junto com o Estado, em uma guerra que vitima inocentes a todo momento. E ela se vê atravessada por isso, por esse desaparecimento do filho, que pode ter sido vítima de uma violência estrutural. Não dá para pensar nos grandes problemas brasileiros, na falta de território, na violência racial ou na violência urbana se a gente não olhar de uma maneira definitiva para os fenômenos que moldaram a nossa sociedade. E daí o mais importante é a estrutura colonial que permanece, porque ela criou uma forma de ver o mundo que nós nunca abandonamos. Essas histórias tocam nesses pontos, mas sem tirar do horizonte a perspectiva de mudanças. Isso é o mais importante. Apesar de ser uma violência estrutural, ela já não vai determinar mais a vida das pessoas, se as pessoas de alguma maneira se educarem e conhecerem porque vivem dessas maneiras.
Mesmo após o fim da trilogia, acha que esse tema continuará a ressoar na sua ficção? Nos próximos romances talvez não, até porque há outras variações da experiência do ser humano que me interessam. Mas é muito provável que em algum momento volte, porque essa é uma questão que atravessa a vida de todos. Se a gente pensar nas origens da desigualdade brasileira, é inegável que isso não venha em algum momento aparecer. Vivemos em um mundo em eterna disputa, e a questão de quem vai sobreviver talvez volte a aparecer no futuro.
Quais seriam essas variações da experiência humana que te interessam? Entender as subjetividades do homem como ele atravessa a história de uma maneira íntegra, como é que ele consegue passar seu legado e sua herança adiante. A história que Rita Preta vive não é muito diferente, por exemplo, de outras histórias que foram escritas ao longo do tempo. O drama que Rita Preta vive foi vivido por Hécuba de Eurípides, na Grécia, [escrita por volta de 424 a.C]. Mãe Coragem e Os Seus Filhos do Brecht também toca nesse tema. Há cerca de 50 anos foi publicado um romance na Europa, escrito por Agustin Gomez-Arcos, que se chama Ana Não e conta a história de Ana Paúcha, em busca do seu filho Jesus Paúcha, que foi que foi lutar na Guerra Civil Espanhola. A mulher foge de David Grossman conta a história de uma mãe que sai de casa e muda de endereço para não receber a notícia do filho que foi lutar na guerra entre Israel e Palestina e pode ter morrido. Embora haja aí a questão da terra e do território, esse é um drama humano que atravessa todos os tempos da história. E no Brasil não é diferente, porque vivemos um tempo em que muitas mães sofrem e reclamam o corpo dos filhos desaparecidos ou choram pelos seus filhos mortos nessa guerra sem fim entre o crime organizado e a polícia e as instituições do estado. Me interessa entender como o ser humano atravessa esses momentos críticos da história da humanidade. Eu acho que essa tensão sempre vai estar no horizonte para pensar como o ser humano, apesar das diversidades, consegue sobreviver à violência da história.
Os traumas dos personagens são bastante marcantes na Trilogia da Terra como um todo. Seriam os traumas fontes inesgotáveis para a ficção? Eu acho que a ficção se debruça sobre a experiência humana em todos os tempos e da história e vai continuar a se debruçar. A experiência humana é feita dessa diversidade. Quando a gente fala de experiência, eu não penso apenas nos traumas, mas penso em como o ser humano vive no mundo. A gente vai encontrar romances, por exemplo, onde o humor está no primeiro plano. Tem um exemplo maravilhoso, está em muitos livros do Jorge Amado, mas a gente vai encontrar na novela O Compadre de Ogum ou na outra novela A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, que mesmo com a leveza da história, está concentrada em questões cruciais e fundamentais para o ser humano. Eu acho que toda a escrita gira em torno dessa incapacidade do ser humano de definir alguns sentimentos e alguns fenômenos da vida. Nos interessa compreender o nascer e o morrer e também entender o amor e ódio e essa linha tênue que divide esses dois sentimentos. Toda escrita no fundo se debruça sobre essa experiência humana, que é uma experiência complexa, mas que é também universal e atravessa a história do homem em todos os tempos.
É por causa disso que você se incomoda com o conceito de literatura regional? Exatamente. Eu acho que o regional é sempre um conceito definido numa relação de poder e de quem é o centro, de quem guarda essa centralidade. Ou nada é regional ou tudo é regional. Para uma personagem que vive no interior do Nordeste, talvez a cidade de São Paulo possa ser regional, porque guarda diferenças de vida, de tempo, de história. Mas eu sempre refuto esse rótulo de regional, porque toda história é escrita a partir de seu centro, e ela só pode ser regional numa relação de hierarquia entre quem domina e quem é dominado. Não me agrada muito essa relação de hierarquia.
O personagem do Cainho, sempre mergulhado nos livros e na escrita, foi inspirado em você de alguma forma? Enquanto eu escrevia, não pensava que Cainho era um alter-ego meu, até porque eu acho que tem diferenças muito importantes entre a minha a vida e a vida dele. Mas tem coisas que se tocam. Talvez na minha compreensão sobre a literatura, que é uma compreensão muito abrangente e que vê o ato de imaginar histórias como um poder para restituir lacunas que existem na nossa vida. Eu acho que, nesse sentido, eu compartilho com o personagem Cainho a sua visão de mundo, de literatura, de história. Ele é um jovem que está escrevendo e, ainda na adolescência, não sabe muito bem o que quer. Ele se interessa pela leitura, mas está escrevendo de uma maneira desordenada. Anos depois do desaparecimento do irmão, ele vai se voltar para o que ele escreveu e descobrir que ele não tinha escrito nada sobre esse personagem, que virou uma ausência. E aí ele decide de uma maneira intuitiva que ele vai escrever, imaginando as passagens da vida e da história que ele não conheceu sobre seu irmão. Aí entra esse poder quase mágico que a literatura tem de restituir a nossa humanidade, de nos restituir aquilo que foi retirado, que foi brutalmente arrancado de nossas vidas. Pensando por essa perspectiva, eu acho que eu compartilho com Cainho essa visão de mundo e de literatura.
A Rita Preta tem esses flashes de um passado traumático e ela fala constantemente de uma correnteza que causou uma tragédia em sua vida. Qual é o simbolismo que esse rio e essa natureza em conflito carrega? As histórias se comunicam nesse sentido. Não tem nada a ver com o realismo mágico, mas são as expressões de vidas, das pessoas que são diversas. Em Torto Arado, a gente tem o Jarê presente, que imprime nas personagens uma cosmovisão de mundo, a possibilidade de se comunicar com seres encantados, com espíritos. Em Salvar o Fogo, a gente tem a personagem Luzia, a quem se credita os dons mágicos, como incendiar os lugares, e a gente não sabe muito bem se isso é verdade. Além da capacidade que ela tem de ver e sentir coisas que a maioria das pessoas não sentem. Em Coração Sem Medo, a personagem Rita, ao longo de toda a história, é assolada por sonhos, que comunicam muito do seu passado mas também do seu presente, do que está por vir. Não há nada de especial nesses sonhos, a não ser para a história. Todos nós, seres humanos, temos essa capacidade de sonhar e entendemos a linguagem, a linguagem difusa e confusa dos sonhos, mesmo que a gente não consiga interpretá-los. Então, o que a Rita nos mostra é que aquilo que vivemos hoje, muitas vezes, foi determinado, recebendo uma influência do passado. As coisas não acontecem ao acaso. Elas seguem uma trilha que foi determinada muito antes de nós. E Rita vai, aos poucos, ganhando essa consciência também.
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