Foi como uma cena de cinema burilada por roteiristas experientes. Na quarta-feira 8, Donald Trump estava reunido com influenciadores conservadores, os fiéis escudeiros de sempre, no Salão Azul da Casa Branca. Discutiam como levar ao cadafalso, acusando de terrorismo, os membros do Antifa, agremiação de esquerda de combate — muitas vezes violento — contra todo tipo de fascismo. Em um canto ao fundo, nem tão atento assim ao encontro, o secretário de Estado Marco Rubio parecia incomodado. Aproximou-se do presidente americano, sussurrou algo ao ouvido do chefe e lhe entregou um bilhete. As câmeras dos fotógrafos que acompanhavam a reunião foram ágeis e registraram o que estava anotado no papelote: “Você precisa aprovar uma publicação no Truth Social para poder anunciar o acordo primeiro”. Trump, que não perde oportunidade de celebrar vitórias, afagando o próprio ego, virou-se para os jornalistas e informou: “Acabei de receber uma nota do secretário de Estado dizendo que estamos muito perto de um acordo sobre o Oriente Médio e que vão precisar de mim muito em breve”.

Aquele instante, entre o prosaico e o inusitado, poderá ser lembrado como o prólogo de um momento histórico, o primeiro passo real de trégua desde os ataques terroristas de 7 de outubro de 2023, capitaneado pelo Hamas e que ceifou a vida de 1 200 pessoas em Israel. Os atentados foram o estopim da guerra na Faixa de Gaza, palco de inaceitável tragédia humanitária, com pelo menos 67 000 mortes — e que agora parece caminhar para a paz possível, ainda que frágil e por um fio. Trump, por meio de sua rede social de predileção, foi direto ao ponto, celebrando com letras maiúsculas o acerto acatado pelas partes: “Um GRANDE dia para o mundo árabe e muçulmano, Israel, todas as nações vizinhas e os Estados Unidos”. Agradeceu os mediadores do Catar, do Egito e da Turquia e finalizou, como quem grita: “ABENÇOADOS SEJAM OS CONSTRUTORES DA PAZ!” Não demorou para que o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, também louvasse o momento: “Agradeço aos heroicos soldados das Forças de Defesa de Israel e a todas as forças de segurança cuja coragem e sacrifício nos trouxeram até este dia”. Uma carta assinada pelo Hamas referendou o passo dado, exigindo apenas que os Estados Unidos e seus parceiros “obriguem o governo de ocupação a implementar integralmente os requisitos do acordo e não permitam que ele se esquive ou atrase a implementação do combinado”.
Houve festejo dos dois lados da fronteira e inclusive em outros cantos do planeta. Numa feliz coincidência, a oficialização da bem-vinda interrupção dos tiros e bombas seria detalhada no dia — 9 de outubro — em que John Lennon completaria 85 anos e, como numa de suas mais bonitas canções, o que todos estão dizendo, independentemente do lado em que se situam no polarizado caldeirão, é give peace a chance (deem uma chance à paz). “Obrigado, obrigado, é o fim da matança, do derramamento de sangue”, comemorava o comerciante Abdul Majeed, em mensagem postada direto de Khan Younis, no sul de Gaza. “Não consigo nem respirar, meu filho vai voltar”, exultava em Tel Aviv, aos prantos, Einav Zangauker, mãe de um dos reféns em cativeiro.

A primeira fase do trato estabelece a devolução de todos os reféns israelenses — os vinte ainda vivos e os corpos dos mortos. Não se sabe, em hediondo capítulo do terrorismo, como foram preservados e em que estado estarão. A contrapartida é a liberação por Israel de 250 prisioneiros palestinos que cumprem pena de prisão perpétua e cerca de 1 700 detidos depois das agressões daquele 7 de outubro. Em seguida, tropas israelenses recuarão de Gaza, saindo dos atuais 68% de área invadida para 57% do território. As próximas cenas ainda serão escritas. Há possibilidade de calmaria, sem dúvida, mas questões fundamentais pesam como chumbo. Dois dos principais enroscos para o acordo deixar o papel são a exigência de que o Hamas se desarme por completo, rendição que sempre rejeitou, e a retirada integral das tropas israelenses do enclave, sinalizada em um mapa que sugere o gradativo encolhimento de sua presença, mas contém uma lacuna inaceitável para o grupo ainda no comando: a ausência de um prazo bem estabelecido. O Hamas deixou claro o tanto que esses dois tópicos representam um entrave ao soltar um alerta, dias antes, dizendo que “ninguém tem o direito de pegar as armas do povo palestino” e ressaltando a necessidade da saída integral dos israelenses. “Convencer o Hamas a iniciar um processo de desmantelamento exige um sólido compromisso de Netanyahu de desocupar Gaza, um freio concreto às negociações”, diz o cientista político Hugh Lovatt, do European Council on Foreign Relations.

O plano agora em parte sacramentado foi o que mais longe chegou nos detalhes sobre um horizonte pós-cessar-fogo para o estreito naco de terra às margens do Mar Mediterrâneo, mesmo mantendo decisivos pontos de interrogação no ar. A ideia, em futuro breve, é formar um “Conselho de Paz” encabeçado por Trump, como esperado, ao qual se somariam nomes como o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair. Uma junta de técnicos palestinos tocaria o dia a dia no enclave, um arranjo ao qual o Hamas já sinalizou positivamente. Tudo isso, claro, é apenas o princípio da hercúlea tarefa que será erguer Gaza dos destroços, o que incluiria fundos americanos, europeus e árabes a um valor calculado em 53 bilhões de dólares pelo Banco Mundial. Uma agência da ONU estima que 78% dos edifícios sofreram danos, muitos deles reduzidos a pó. Já haveria até um detalhado projeto de reconstrução que fatia o território palestino em diferentes áreas, uma delas voltada para o desenvolvimento de tecnologia, outra com vocação turística, à beira-mar, e uma terceira reservada à atividade portuária.
Enquanto intermináveis rounds da mais dura diplomacia transcorriam a portas fechadas, com escassez de informação vazada ao público, a Cidade de Gaza, recentemente ocupada pelo Exército israelense, era alvo de sucessivos bombardeios, deteriorando as já castigadas condições de vida locais. Netanyahu, emparedado de um lado por expoentes da direita radical de sua coalizão, que não querem arredar pé do enclave, e de outro por Trump, que andava dando sinais de impaciência em relação ao premiê, sabe bem que seu futuro político está em jogo. Não por acaso, em gesto de agradecimento e numa tentativa de evitar o precipício político, o israelense convidou Trump a discursar no Knesset, o parlamento. “A implementação total do pacto pode levar à queda de seu governo e, se cair, ele perde imunidade e terá de enfrentar os tribunais, onde é acusado de corrupção”, afirma Firas Maksad, especialista da consultoria Eurasia. Que as peças neste explosivo xadrez se movam em direção ao objetivo maior: a paz duradoura.

Ela é o sonho, já nem tão impossível assim, das pessoas que participaram, na véspera do tão aguardado anúncio, de fortes protestos, no segundo aniversário do horror: a população israelense lotou as ruas agitando bandeiras que clamavam pelo fim da campanha militar liderada por Netanyahu, do qual estão fartos, e pedindo socorro a Trump — socorro, sabemos agora, que finalmente ocorreu. Longe dali, no campus de Columbia, a prestigiada universidade de Nova York, havia cadeiras vazias enfileiradas, nas quais repousavam fotos dos que tiveram a existência abreviada na investida terrorista.

Há colossais incertezas, e elas podem crescer, mas também genuína esperança. É janela para que um dia, quem sabe, a quimera resumida em linda frase do escritor Amós Oz (1939-2018) seja enfim lavrada pela honestidade: “Não estamos sozinhos em Jerusalém. Digo o mesmo aos meus amigos palestinos. Vocês não estão sozinhos nesta terra. Não temos outro remédio senão dividir esta pequena terra em dois apartamentos ainda menores. Sim ao compromisso entre Israel e a Palestina”.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2025, edição nº 2965