Há ministros que passam pelo Supremo Tribunal Federal. E há ministros que o transformam. Luís Roberto Barroso pertence, sem dúvida, à segunda categoria. Sua trajetória na Corte — de 2013 até a presidência, em um dos períodos mais conturbados da história republicana — é o retrato de um magistrado que fez da defesa das instituições não apenas uma convicção jurídica, mas uma missão civilizatória.
Barroso chegou ao STF pelas mãos de Dilma Rousseff, num tempo em que o país ainda acreditava na força das instituições e na promessa de uma democracia estável. Brilhante constitucionalista, respeitado no meio acadêmico e jurídico, ele assumiu a toga com o discurso de que o Supremo não deveria ser protagonista do poder, mas guardião da Constituição. Ironia do destino: a década seguinte o obrigaria a ser os dois.
Ao longo dos anos, o ministro se viu à frente de decisões que moldaram o debate nacional. Da discussão sobre o aborto no primeiro trimestre — em que defendeu o direito da mulher à dignidade e à autonomia — à relatoria das execuções penais do Mensalão do PT, Barroso foi consolidando uma marca: coragem intelectual e desprezo pela conveniência política. Sua oratória elegante, às vezes professoral, contrastava com a firmeza de suas convicções. E foi justamente isso que o transformou em alvo de ódios e paixões em igual medida.
Em vários momentos dessa trajetória, Barroso conversou comigo — em entrevistas francas, profundas e sempre de alto nível — sobre os rumos da democracia e o papel do Judiciário. Em uma delas, registrada no G1, afirmou que “o impeachment é um momento de abalo político”, ao mesmo tempo em que defendeu o semipresidencialismo como modelo mais estável para o país (leia aqui). Já em outra, no programa Amarelas On Air, da Veja, ele criticou a falta de compostura de líderes políticos e alertou: “a falta de compostura de um chefe de Estado faz mal para todo o país” (assista aqui). Essas conversas, em diferentes momentos da vida pública, revelam um magistrado atento ao impacto ético da política e consciente de que a degradação do discurso público também corrói as instituições.
Mas essa visão liberal e garantista não nasceu no Supremo. Já em 2010, em um estudo citado em reportagem minha na Folha de S.Paulo, Barroso defendeu o direito das Testemunhas de Jeová de recusar transfusões de sangue por convicções religiosas (leia aqui). À época, ele argumentava que a autonomia individual e a liberdade de consciência são pilares inegociáveis de uma sociedade democrática. O mesmo raciocínio — o de que o Estado não deve impor uma moral única — seria a base de muitos de seus votos posteriores no STF. É a linha contínua de um pensamento que enxerga o Direito como instrumento de emancipação, não de coerção.
Nem todas as suas convicções, porém, resistem incólumes à prova do tempo. Em entrevista concedida ao documentário Em Nome dos Pais, da HBO — dirigido por este colunista — Barroso defendeu a Lei de Anistia de 1979, que perdoou torturadores e agentes do regime militar. A meu ver, um equívoco grave. A defesa da anistia em nome da “pacificação nacional” ignora que não há paz possível sobre o silêncio das vítimas. Ao proteger os algozes da ditadura, o Estado brasileiro perpetuou a impunidade e enfraqueceu a própria ideia de Justiça que Barroso, em tantas outras frentes, sempre buscou afirmar. Nesse ponto, o jurista se afastou de sua melhor tradição — a de colocar a dignidade humana acima de qualquer conveniência política.
Foi no comando do STF, a partir de 2023, que Barroso viveu o auge e o inferno da função. Herdou uma Corte abalada pelos ataques de 8 de janeiro, que colocaram à prova a própria sobrevivência da democracia brasileira. Coube a ele conduzir, com firmeza e serenidade, o processo de responsabilização dos envolvidos — tarefa que consolidou a imagem do Supremo como último reduto da ordem constitucional. Sob sua presidência, mais de uma centena de condenações foram confirmadas, e a instituição recuperou parte da autoridade moral perdida em anos de desgaste político.
Barroso também liderou o tribunal durante o julgamento da chamada “trama golpista”, que culminou na condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ao declarar que o STF havia “cumprido uma missão histórica”, o ministro sinalizou algo maior do que uma sentença: o encerramento simbólico de uma era de afrontas à legalidade. A Corte, sob sua batuta, assumiu a responsabilidade de marcar o limite do inaceitável — mesmo diante do risco de ser acusada de politização.
Houve excessos? Certamente. A relação de Barroso com o poder político foi marcada por choques públicos e frases de efeito que entraram para o folclore nacional — do “perdeu, mané” às farpas trocadas em plenário com colegas como Luiz Fux ou Gilmar Mendes. Mas reduzir sua passagem ao anedótico é não entender o essencial: Barroso representou a reação do Estado de Direito diante do colapso institucional. E, em um país acostumado à omissão, reagir já é um ato revolucionário.
O legado de Barroso não se mede apenas pelas decisões que proferiu, mas pelo sentido histórico de sua liderança. Ele presidiu um Supremo pressionado por todos os lados — e que, ainda assim, resistiu. Sua figura é controversa, e deve ser. Democracias não são feitas de unanimidades, mas de contrapesos. E o ministro, com todas as suas virtudes e vaidades, foi o contrapeso de uma era em que a barbárie tentou se vestir de patriotismo.
Ao deixar a presidência, Barroso entrega um STF ferido, mas de pé. Um tribunal mais consciente de seu papel, e uma sociedade que, ainda que a contragosto, aprendeu o valor de um juiz que não teme desagradar. No fim, o ministro que começou defendendo um Supremo moderado terminou provando que, em tempos extremos, moderação é não fugir da luta.