counter Camadas ancestrais – Forsething

Camadas ancestrais

Luminosa redoma, clara como um planeta, redonda rosa de água. Quem lê essas expressões de Pablo Neruda poderia pensar que o poeta chileno está falando de amor, seu tema mais frequente. Mas, na verdade, o que ele descreve nessas imagens é um alimento dos mais cotidianos: a cebola.
A homenagem feita na “Ode à Cebola” mostra a importância que essa planta alcançou. É difícil imaginar uma cozinha em que ela não tenha lugar. E isso não é de hoje. Na pré-história, quando ainda não havia se desenvolvido a agricultura, os primeiros humanos já comiam suas variedades silvestres. Antes que qualquer um pudesse pensar em louvá-la em versos, ela já era consumida.
Obras médicas indianas e gregas, assim como escritos culinários da Roma Antiga, testemunham como ela se espalhou e quão variados eram seus usos, tanto gastronômicos como farmacêuticos.
No Egito dos faraós, ela tinha, ainda, sentido espiritual. Por sua estrutura em círculos concêntricos, era considerada um símbolo da eternidade. Foi representada em pinturas nas pirâmides, e bulbos de cebola foram achados junto a múmias. Não se sabe se a ideia era que o forte odor fizesse os antepassados respirarem de novo, ou se, por suas propriedades antissépticas, fosse considerada um remédio útil no além.
Tornou-se tão comum que, na Idade Média, chegou a servir de moeda. E, com as grandes navegações, ela chegou às Américas, conquistando, assim, o último quinhão do globo que faltava.
Crônicas do começo da colonização do Brasil falam em “cebolas trazidas do reino”. Primeiro, ela foi considerada um “tempero de quintal”, ao lado da salsa, do coentro e de sua “prima” cebolinha, sendo cultivada em hortas domésticas. Sua produção ganhou escala quando se entendeu que ela crescia melhor no semiárido nordestino e no sul do país. Ela não é amiga da umidade e precisa de sol: a parte que consumimos só começa a engordar quando as horas de luz aumentam.
Assim como ganhou o mundo, povoa a cultura. É frequente nas naturezas-mortas, de nomes como Renoir e Van Gogh, que exploram os tons de cobre de sua casca. A forma bojuda das cúpulas das catedrais ortodoxas faz pensar na anatomia de seu bulbo. Na fala popular, os italianos, como nós, recomendam “se vestir como cebola” quando o clima está variando.
A linguagem, é claro, não deixaria de lado uma de suas características mais marcantes. Um provérbio americano diz que a vida é como uma cebola: a gente a descasca camada por camada e, de vez em quando, chora. Em Portugal, há um dito semelhante: “o mundo é uma cebola que se descasca a chorar”.
Curiosamente, só há pouco mais de 20 anos se desvendou a química desse fenômeno, tornando possível criar variedades que poupam os cozinheiros das lágrimas.
Seja como for, com o cozimento, seu sabor marcante se torna adocicado. Na minha cozinha, ela brilha como protagonista. Pode ser assada e recheada com carne moída; cozida, em forma de geleia, para acompanhar grelhados, caramelizada, numa torta fácil e sofisticada, ou numa versão de sopa light, servida dentro da própria cebola, mas que nada deve à receita clássica francesa. Como Neruda, celebro as mais diversas formas em que, na panela, seu “globo de frescor” se torna “pluma de ouro”.

Publicidade

About admin