A cada período mais seco, menos água. A floresta parece mudar de humor, a alimentação fica mais escassa e a fumaça dos incêndios se mistura ao ar quente. Para povos ribeirinhos, indígenas, quilombolas e extrativistas da Amazônia, essa é uma realidade cada vez mais imperativa. De acordo com o relatório Mais Dados Mais Saúde – Clima e Saúde na Amazônia Legal, produzido pela Vital Strategies e pela Umane, 42,2% dessas populações afirmam já ter sido diretamente afetadas pelas mudanças climáticas, contra 32% da população geral. Além disso, quase metade (48,4%) conhece alguém que também foi impactado pelas alterações no clima.
Trata-se da primeira vez que a pesquisa contempla residentes dos nove estados da Amazônia Legal — Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins —, com segmentação para população pertencente e não pertencente a povos e
comunidades tradicionais, como pescadores artesanais, indígenas, ribeirinhos, extrativistas e quilombolas. Ao todo, 4.037 pessoas foram ouvidas entre maio e julho de 2025, ampliando o conhecimento sobre uma região historicamente sub-representada em levantamentos
populacionais.
Entre os principais impactos sentidos pelos entrevistados estão o aumento da conta de energia elétrica (83,4%), a elevação das temperaturas médias (82,4%) e o aumento da poluição do ar (75%) estão os principais impactos percebidos. A população também associa o fenômeno à alta dos preços dos alimentos (73%) e à maior ocorrência de desastres ambientais (74,4%). Nos últimos dois anos, 64,7% disseram ter enfrentado ondas de calor, 29,6% relataram secas persistentes, e quase 30% vivenciaram incêndios florestais com fumaça intensa. Já 28,7% citaram o desmatamento ambiental e 26,7% notaram a piora da qualidade do ar.
A piora na qualidade da água, em particular, foi relatada por 19,9% da população, enquanto 17,1% citaram problemas na produção de alimentos — dois indicadores que ganham relevância quando observados entre povos e comunidades tradicionais, onde esses percentuais sobem para 24,1% e 21,4%, respectivamente.
“A princípio, essas podem parecer porcentagens pequenas, mas, ao entendermos que representam em torno de 5 milhões de pessoas, fica
evidente o grande impacto que essas mudanças climáticas representam no dia a dia das pessoas, dificultando o acesso a itens básicos”, reforça Luciana Vasconcelos Sardinha, diretora adjunta de doenças crônicas não transmissíveis da Vital Strategies e responsável técnica pela pesquisa.
Saúde e insegurança alimentar
O levantamento também evidencia a insegurança alimentar. Entre os povos indígenas, pescadores e ribeirinhos, de 65% a 74% já se preocuparam com a possibilidade de faltar comida em casa. A proporção dos que comeram menos do que deveriam por falta de dinheiro vai de 35% entre extrativistas a 66% entre pescadores artesanais. Além disso, 61,3% dos pescadores e 49,9% dos quilombolas disseram já ter pulado refeições, e cerca de 68% relataram que secas e cheias têm afetado o acesso à comida.
Entre as doenças crônicas, a hipertensão arterial tem prevalência de até 46,1% entre extrativistas, e o diabetes chega a 43%, muito acima da média nacional. Problemas respiratórios, como bronquite, também foram mencionados. Já quando se trata de saúde mental, a depressão atinge 28,9% dos quilombolas e 23% dos ribeirinhos, enquanto a ansiedade aparece em 42,8% dos quilombolas e 40,5% dos extrativistas.
Ansiedade climática
Em um campo mais subjetivo, o levantamento mostra que 31,6% das pessoas percebeu uma mudança climática em um lugar importante afetivamente. A abrangência dessa percepção foi igual entre homens e mulheres e todas as faixas de renda, sendo verificado um discreto aumento entre pessoas mais velhas. Entretanto, o grupo que mais declara impactos nesse sentido é o de algum povo ou comunidade tradicional, como os povos indígenas – nesse caso, a porcentagem sobe para 38,2%. “Essa diferença pode estar associada à centralidade do território e dos espaços simbólicos para esses grupos, uma vez que as mudanças ambientais não afetam apenas a subsistência econômica, mas também têm íntima relação com as dimensões socioculturais, espirituais e identitárias, amplificando a percepção e a vivência do impacto climático”, diz o relatório.
Investigar esse tipo de parâmetro adentra um conceito cada vez mais explorado, o da ansiedade climática. Ansiedade climática, ou ecoansiedade, é um sentimento de angústia, medo e desamparo em relação às mudanças climáticas e seus impactos ambientais. É uma resposta psicológica à crise ambiental e pode se manifestar como preocupação excessiva, dificuldade de lidar com o futuro incerto e até mesmo se desdobrar em transtornos mentais.
Comportamento
A mudança climática na região da Amazônia Legal também tem alterado comportamentos. Metade da população relatou ter reduzido práticas que acredita poder contribuir para o agravamento do problema (53,3%), e 38,4% disseram sentir culpa por “desperdiçar” energia, um dos fatores que consideram influentes nas mudanças climáticas. A maioria dos residentes costuma separar o lixo para reciclagem (64%), prática ainda mais comum entre povos e comunidades tradicionais (70,1%) em comparação com a população que não se identifica com esses grupos (59,2%).
Entre eles, mais da metade afirmou que gostaria de ter se comportado de forma mais sustentável, em contraste com 40,5% entre os não pertencentes. O sentimento de culpa pelo desperdício de energia também foi mais frequente entre povos e comunidades tradicionais (45,1% contra 33%), possivelmente um sinal da dimensão simbólica e territorial que esses povos atribuem ao território. A crença de que é possível agir para ajudar a resolver o problema das mudanças climáticas foi compartilhada por 55,7% dos pertencentes a povos e comunidades tradicionais, contra 39,8% dos demais.
“Os dados mostram que povos e comunidades tradicionais não estão apenas mais expostos aos efeitos das mudanças climáticas, mas também mais conscientes de suas consequências. Isso acontece porque vivenciam transformações diretas em seus territórios, em seus modos de vida, em suas práticas socioculturais e econômicas e em suas redes comunitárias”, ressalta Luciana Vasconcelos Sardinha.
Metodologia
O levantamento foi realizado entre 27 de maio e 24 de julho de 2025, de forma 100% online, por meio de anúncios veiculados na internet, sem qualquer tipo de recompensa. “Quando um usuário acessava um site ou interagia com conteúdo online, podia visualizar um banner convidando-o a responder à pesquisa”, explicou a Umane. Em relação ao formato online, os pesquisadores observaram que nem todos possuem uma linha telefônica residencial, mas têm acesso à internet por meio de pacotes de dados ou Wi-Fi.
“Os achados deste relatório convergem para um quadro nítido: na Amazônia Legal, mudanças climáticas, meio ambiente e saúde estão intrinsecamente conectados e os povos e comunidades tradicionais ocupam posição central tanto na percepção quanto na resposta a essa crise”, conclui o relatório.