De acordo com o especialista em manuscritos Christopher de Hamel, é mais fácil encontrar o Papa ou o presidente dos Estados Unidos do que tocar no Très Riches Heures do Duque de Berry. Encomendado em 1411 pelo Duque Jean de Berry (1340–1416), filho do rei da França João II (1319–1364), o manuscrito foi confiado aos talentosos irmãos Limbourg. No entanto, em 1416, tanto o Duque quanto os irmãos Limbourg faleceram, provavelmente vítimas da Peste Negra, que assolava a Europa naquele período. O manuscrito permaneceu inacabado até ser concluído, décadas depois, por outros artistas: Barthélemy d’Eyck, por volta de 1446, e Jean Colombe, em torno de 1485.
Em uma época em que os livros eram objetos de luxo, o Duque de Berry destacava-se por sua vasta e renomada coleção, composta por cerca de trezentos volumes, além de pedras preciosas e objetos raros. Esses livros, contudo, não se assemelhavam aos que conhecemos hoje: tratavam-se de obras de arte únicas, nas quais cada página era detalhadamente pintada à mão por artistas excepcionais de seu tempo.

O título do manuscrito, Très Riches Heures, vem do inventário realizado após a morte do duque para catalogar seus bens. Devido à abundância de ouro, prata e lápis-lazúli nas miniaturas, o manuscrito foi descrito no documento como “As Horas Muito Ricas do Duque de Berry”. Durante a Idade Média, especialmente entre os séculos XIII e XVI, os livros de horas serviam para guiar orações diárias segundo as “horas canônicas”, momentos específicos do dia dedicados à devoção. Esses manuscritos eram objetos de luxo, personalizados para cada patrono, e representavam prestígio e eternidade, como uma forma de fixar sua presença na história. O Très Riches Heures é único pois retrata tanto a vida aristocrática quanto o cotidiano camponês, algo raro para a época, tornando-se um espelho da sociedade medieval. Como observou o escritor Umberto Eco (1932–2016), autor do livro O Nome da Rosa (1980), o Très Riches Heures “nos permite chegar mais perto da Idade Média”. Suas pinturas registram não apenas costumes sociais de um passado distante, mas também construções históricas, como o Castelo de Lusignan, propriedade do Duque de Berry e destruída no século XVII.

Em 1856, o Duque de Aumale, Henri d’Orléans (1822–1897), filho do último rei da França, Louis-Philippe I (1773–1850), adquiriu o manuscrito. O castelo de Chantilly era sua propriedade, e o Duque fundou o atual Museu Condé, que fica dentro do castelo. Hoje, o Museu Condé abriga a segunda coleção de arte mais importante da França, depois do Louvre, com obras de artistas como Fra Angelico (c.1395–1455) e Rafael (1483–1520). O Duque de Aumale doou oficialmente o manuscrito ao museu em 1886, e em seu testamento, o Duque determinou que o manuscrito nunca poderia deixar Chantilly. Devido à extrema fragilidade e valor da obra, ela foi exibida apenas em duas ocasiões antes da restauração deste ano: em 1956 e depois em 2004.
Embora o Duque de Aumale tenha determinado que o manuscrito nunca fosse emprestado a nenhum outro museu, ele incentivou a reprodução do Très Riches Heures por meio de tecnologias de ponta disponíveis à época. Essa iniciativa permitiu sua ampla difusão e inspirou diversos artistas que seguiram, entre eles, os criadores do filme A Bela Adormecida (1959), dos estúdios Disney.
O Très Riches Heures é, sem dúvida, a peça mais preciosa da coleção do Museu Condé. Após um cuidadoso processo de restauração e uma série de estudos técnicos, vinte e seis páginas do manuscrito foram apresentadas ao público pela primeira vez nesta exposição, em condições de iluminação especialmente projetadas para revelar a riqueza dos detalhes. As análises técnicas e a restauração foram conduzidas pelo Centro de Pesquisa e Restauração dos Museus da França (C2RMF) e pelo Centro de Pesquisa em Conservação (CRC). Entre os mistérios investigados estava a questão de saber se os artistas que deram continuidade ao manuscrito, Barthélemy d’Eyck e Jean Colombe, trabalharam sobre páginas em branco ou sobre folhas previamente iniciadas pelos irmãos Limbourg. Também foram encontrados desenhos subjacentes à pintura final, revelando o processo criativo original dos Limbourg. As páginas atribuídas aos irmãos mostram o uso intenso de ouro e lápis-lazúli, reforçando o caráter “rico” da obra e o gosto do Duque de Berry, que não media gastos para a execução extraordinária de seus manuscritos iluminados.
A mostra foi realizada no espaço Jeu de Paume, construído em 1756 e localizado a passos do castelo de Chantilly. A exposição reuniu obras emprestadas de instituições renomadas, como o Metropolitan Museum of Art (Nova York), a Biblioteca Bodleian (Oxford) e o Museu do Louvre (Paris). Segundo o curador da mostra e diretor do Museu de Chantilly, Mathieu Deldicque, em entrevista à coluna Vernissage, obter esses empréstimos foi um dos maiores desafios da realização da exposição.
A mostra começa com uma caixa de prata encomendada especialmente pelo Duque de Aumale para guardar o manuscrito em Chantilly. As galerias seguintes reuniram objetos que ajudam a compreender por que o Très Riches Heures é considerado um marco na história da arte. Entre eles cartas relativas à aquisição do manuscrito pelo Duque de Aumale no século XIX; esculturas pertencentes à coleção do Duque de Berry; pedras preciosas e objetos de astronomia e astrologia, temas de grande interesse para o duque; pinturas italianas que inspiraram os irmãos Limbourg; outros manuscritos comissionados por Jean de Berry, como o Grandes Heures, Belles Heures (a primeira obra dos Limbourg), Petites Heures (a menor e mais antiga) e Très Belles Heures. O Très Riches Heures contém 206 fólios no total, mas a parte mais realçada na exposição com uma iluminação especialmente projetada para destacar seus minuciosos detalhes após a restauração é o calendário, que apresenta cenas da vida cotidiana e dos meses do ano, acompanhadas pelos signos do zodíaco.

De acordo com Mathieu Deldicque, “interessar-se pelas Très Riches Heures é ir além do milagre de sua criação extraordinária, nascida do sonho do maior mecenas do fim da Idade Média francesa e dos irmãos que revolucionaram a arte da iluminura.”