O metanol é um tipo de álcool tóxico que não deve ser consumido. Ele está presente em produtos domésticos e industriais como limpadores de vidro, tintas, vernizes, tintas de copiadoras, frascos de anticongelante e perfumes. Mesmo parecendo com o álcool de bebidas (etanol) no cheiro e no gosto, o metanol é potencialmente mortal se ingerido.
Na última semana, o Brasil registrou vários casos de intoxicação por metanol após o consumo de bebidas adulteradas. Até 5 de outubro de 2025, o Ministério da Saúde confirmou 225 notificações — 16 casos confirmados e 209 em investigação. São Paulo concentra 192 ocorrências (14 confirmados, 178 em apuração). No total, foram notificadas 15 mortes, sendo duas confirmadas em São Paulo; as outras aguardam confirmação laboratorial. Os casos notificados ocorreram em 13 estados brasileiros.
Embora metanol e etanol pareçam similares no cheiro e no gosto, a diferença está no que acontece depois que entram no corpo. O etanol é processado em duas etapas: primeiro, a enzima álcool desidrogenase (ADH) o converte em acetaldeído, um composto tóxico que ajuda a explicar a ressaca; em seguida, a aldeído desidrogenase (ALDH) transforma o acetaldeído em acetato, que é eliminado como água e dióxido de carbono. Já o metanol segue o mesmo caminho enzimático, mas com resultados devastadores: o ADH o transforma em formaldeído, e o ALDH converte o formaldeído em ácido fórmico, que se acumula e causa acidose metabólica grave e danos ao nervo óptico — podendo levar à cegueira e à morte.
Os sintomas do envenenamento geralmente surgem 12 a 24 horas após a ingestão, mas podem aparecer entre 6 e 72 horas. Eles se manifestam somente depois que o metanol é metabolizado pelo fígado nas substâncias tóxicas e incluem dor de cabeça, dor abdominal intensa, náuseas, vômitos e alterações visuais, que podem levar à visão turva ou cegueira.
O tratamento precisa ser rápido. Além de antídotos como o etanol farmacêutico e fomepizol, que bloqueiam a transformação do metanol em suas formas mais tóxicas, a hemodiálise é frequentemente essencial. Ela filtra o sangue, remove os metabólitos perigosos e corrige a acidose metabólica, uma das principais causas de morte. Quanto mais cedo a diálise começa, maiores as chances de sobrevivência sem sequelas.
Casos assim estão longe de acontecer só no Brasil. Em 2012, na República Tcheca, 121 pessoas foram intoxicadas, e 41 morreram — parte antes mesmo de chegar ao hospital. Entre os sobreviventes, muitos ficaram com sequelas visuais ou neurológicas permanentes. O país precisou criar um protocolo de emergência para distribuir o pouco fomepizol disponível, reservando o antídoto aos casos mais graves. Em 2024, seis turistas morreram no Laos após visitarem uma pequena cidade do país asiático conhecida por atrair um público jovem em busca de festas. Entre as vítimas estava uma australiana de 19 anos, que teve inchaço cerebral causado pelo consumo de uma bebida destilada adulterada com metanol. A polícia local acabou encontrando a fábrica onde o álcool contaminado era produzido.
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Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) mantém um banco de dados global com essas tragédias. Segundo a organização humanitária, a Ásia tem a maior prevalência de envenenamento por metanol do mundo. Entre dezembro de 2024 e 2025, a Turquia teve dois grandes casos: em Ancara, mais de 90 pessoas intoxicadas e 65 mortes; em Istambul, cerca de 235 casos e 70 mortes. Na Índia, casos são recorrentes — em 2024, 165 pessoas adoeceram e 65 morreram. O MSF estima que muitos casos nunca são diagnosticados, mas, entre os registrados, a letalidade chega a 20–40%.
No mundo, tragédias com metanol costumam estar ligadas à pobreza — bebidas adulteradas são mais consumidas por quem tem menos acesso a produtos seguros. Mas o caso brasileiro parece diferente: as bebidas envolvidas circulavam em contextos urbanos e variados, o que mostra que o problema não se restringe às margens.
Basta uma tragédia com metanol para setores econômicos se mobilizarem — a Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares de São Paulo já saiu em defesa de “mudanças na fiscalização” (sim, obviamente) e até de “redução de impostos” (não, nem pensar), transformando uma crise de saúde pública em argumento de mercado. Mas é preciso cuidado: usar um crime de adulteração de bebidas para pedir alívio fiscal ao álcool legal é tão fora de lugar quanto culpar o imposto do cigarro pelos cigarros contrabandeados. Casos como esse se repetem por produção clandestina e fiscalização precária. E duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo: a vigilância sanitária precisa ser mais rigorosa — e os impostos sobre bebidas alcoólicas, mantidos, porque o etanol também cobra seu preço em doenças e mortes evitáveis.
Uma pesquisa recente mostrou queda nas vendas de bebidas alcoólicas após o caso — o medo faz o que políticas públicas não conseguem. Mas essa não pode ser, evidentemente, a única forma de o país beber menos.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram: @ilanapinsky_