Há dois anos, Ana Lúcia Torre começou a sentir um cansaço inexplicável. A atriz paulistana, que sempre foi bastante ativa em sua carreira na TV, emendando novelas na Globo, achou estranho e decidiu investigar. Um diagnóstico de que seu organismo tinha parado de produzir cortisol, hormônio essencial ao metabolismo, foi a resposta — e trouxe também uma epifania. Sempre reservada quanto à vida pessoal e prestes a completar oito décadas de vida, ela percebeu que estava na hora de contar sua própria história ao público, que sempre a reconheceu por trabalhos marcantes, como a vilã Débora de Alma Gêmea (2005) — que até hoje viraliza com memes na internet e mantém sua popularidade em alta com as reprises sem fim no Vale a Pena Ver de Novo da Globo ou no canal Globoplay Novelas. “Aos 80 anos, me deu coragem de falar de tudo que eu nunca falei”, explicou a veterana a VEJA num ensaio de Olhos nos Olhos, monólogo tocante que estreará no sábado 11 no Teatro Santos Augusta, em São Paulo.
A decisão de abrir-se sobre si mesma no palco somente agora, na maturidade, ilumina a modalidade peculiar de artista que Ana Lúcia sintetiza com brilho: embora seja uma face familiar e querida do público das novelas há décadas, ela nunca esteve no centro dos folhetins. Ainda assim, viu suas personagens coadjuvantes sempre roubando a cena — caso da Neca de O Cravo e a Rosa (2000) ou da Vó Hilda de Verdades Secretas (2015). Mesmo nesses momentos de grande exposição na Globo, porém, preferiu ficar longe dos holofotes e manchetes sobre celebridades.

Nos últimos meses, Ana Lúcia resolveu abdicar de novos papéis na emissora para focar em sua peça autobiográfica, permeada por letras de Chico Buarque. Dirigida por Sergio Módena e produzida por suas amigas de longa data Selma Morente e Célia Forte, Olhos nos Olhos revela como Ana Lúcia vem enfrentando sua doença hormonal e como o drama a fez refletir sobre sua vida. A montagem traz à luz momentos traumáticos sobre os quais ela nunca quis falar, como sua prisão por uma semana no DOI-Codi em São Paulo, em 1974, durante a ditadura militar. O motivo da detenção: ela se tornara suspeita de subversão por integrar o grupo de teatro do Tuca, da PUC-SP, então conhecido posto de resistência ao regime. A atriz também revisita a criação rígida dos pais, relacionamentos amorosos — incluindo dois divórcios — e a maternidade de seu único filho, o produtor Pedro, de 40 anos. “Comecei a me permitir muita coisa agora. Espero que sirva de inspiração para que outras pessoas na minha idade vejam que não precisamos parar”, diz Ana Lúcia. Eis uma dama discreta — e incansável.
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2025, edição nº 2964