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Pílulas de farinha: relembre o escândalo que gerou centenas de gestações inesperadas no Brasil

Em 1989, Silvana Dangel decidiu que não teria mais filhos. Havia acabado de ter o primeiro, após uma gestação tubária complicada que levou à retirada das trompas e do ovário esquerdo. Diante do alerta médico sobre os riscos de uma nova gravidez, ela optou por se prevenir com o anticoncepcional Microvlar — na época, o terceiro medicamento mais vendido no Brasil, atrás apenas de Cataflam e Novalgina.

A surpresa veio alguns anos depois. Mesmo usando o remédio, em circulação no Brasil desde 1975, Silvana saiu de uma consulta com o beta-HCG positivo e exames que apontavam uma gestação de dois meses e meio. “Eu falei: impossível. Quando você toma um remédio para dor de cabeça, acredita que a dor vai passar. Quando toma um anticoncepcional, acredita que não vai engravidar”, relembra.

A história dela se soma às de Paloma, Meire, Maria Lúcia e Inês em Pílula de Farinha: O Escândalo que gerou vidas, série da HBO idealizada por Jana Medeiros e Eddy Fernandes. A produção retorna a 1998, quando cerca de 600 mil comprimidos chegaram às farmácias depois que placebos usados em testes de embalagem pelo laboratório alemão Schering do Brasil foram parar indevidamente no mercado. Ao menos 250 mulheres recorreram à Justiça após engravidar tomando o medicamento — um número que especialistas acreditam ser apenas a ponta do iceberg, diante da quantidade de caixas distribuídas e da possibilidade de muitas mulheres sequer terem sido informadas sobre o problema.

Pilulas de Farinha da HBO
Silvana Dangel, uma das personagens de Pílulas de Farinha, na HBO MaxHBO Max/Divulgação

Apesar da dimensão, o caso acabou sendo envolto por um certo silêncio. “Em um dia estava no topo das manchetes, no outro já tinha descido para o pé da página dos jornais”, lembra Jana Medeiros, diretora de conteúdo da série e, na época, repórter do Jornal do Brasil. Esse apagamento, diz ela, foi um dos motivos para revisitar o episódio. “Era ano de Copa do Mundo, de eleições. Mas nada justifica o esvaziamento diante do impacto social, sobretudo na vida dessas mulheres.”

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Mais do que buscar respostas, a série procura levantar questionamentos. Ao trazer de volta uma história quase esquecida, Pílula de Farinha dá voz às mulheres que, na época, pouco foram ouvidas — muitas vezes até desacreditadas. “Ao analisar os arquivos de imprensa, vimos casos em que o repórter estava ao lado da mulher, mas entrevistava o marido. Uma matéria mostra o microfone voltado para ele, enquanto perguntavam sobre ter ‘mais uma boca para alimentar’. O ponto de vista delas quase não eram ouvidos. São várias camadas de dor nessa história”, diz Jana.

Esse silêncio, na opinião da equipe, reflete não só o machismo estrutural, mas também a romantização da maternidade. “Se não fossem mulheres as protagonistas do problema, e se não houvesse gravidez em jogo, será que a atenção teria sido outra?”, questiona Cassia Dian, que dirigiu a produção. “Ser mãe pode, sim, ser uma bênção, como muitos dizem, mas quando a gravidez não é esperada nem desejada, a vida vira de ponta-cabeça — física, psicológica e financeiramente.”

Ao longo de três episódios com cerca de 40 minutos, a série também mostra o outro lado, incluindo entrevistas com o então presidente da Schering no Brasil. Até hoje, a empresa nega ter distribuído pílulas com placebo, alegando que a venda teria sido causada por um desvio desconhecido após o descarte — uma versão que jamais foi comprovada ou refutada. A produção tentou contato com o laboratório e com as empresas que assumiram suas operações no país, mas todas se recusaram a dar entrevistas ou apresentar suas versões.

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Pilulas de Farinha na HBO Max
Maria Lúcia, de Osasco, também foi uma das mulheres que engravidaram após utilizar o falso contraceptivoHBO Max/Divulgação

A estreia de Pílulas de Farinha acontece em um momento curioso. Do envenenamento por bebidas adulteradas com metanol, que já deixa ao menos oito mortos no Brasil, às fábricas clandestinas de suplementos e aos medicamentos falsificados — de tratamentos para obesidade ao câncer —, a produção da HBO ecoa em um cenário marcado por novos escândalos sanitários. Embora não tenha sido planejado, o timing parece cirúrgico.

Nos anos 1990, a própria imprensa já chamava atenção para a dimensão da fraude farmacêutica. Uma reportagem da Veja, em 1º de julho de 1998, estimava que o mercado de remédios falsificados movimentava de US$ 100 milhões a US$ 1 bilhão por ano no Brasil. “A indústria da fraude é tão florescente que os falsários de hoje são verdadeiros artistas e grandes investidores”, dizia o texto.

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Revisitar o passado, diz Jana, é também preparar presente e futuro. “É preciso refletir sobre como acolhemos vítimas, como regulamos a indústria, como a imprensa cobre casos assim. E, além de tudo, romper o pacto de confiança cega de que aquilo que compramos sempre vai corresponder àquilo que o rótulo promete, seja um remédio, um alimento, uma bebida…”.

Pílula de Farinha está disponível na HBO desde 30 de setembro, com novos episódios lançados semanalmente. O segundo chega em 7 de outubro e o terceiro, em 14 de outubro.

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