O diplomata Sebastián Depolo Cabrera assumiu a embaixada do Chile no Brasil em janeiro de 2023, depois de quase dez meses esperando pelo agrément do governo anterior, de Jair Bolsonaro, para poder atuar no país. Economista de formação, com vasta experiência em política internacional, Depolo tem priorizado o fortalecimento das relações comerciais bilaterais, a implementação dos corredores bioceânicos e a coordenação política entre os dois países em temas como democracia e multilateralismo.
Na entrevista exclusiva à coluna, Depolo analisa as oportunidades e desafios da parceria Chile-Brasil no contexto do tarifaço americano e de outros desafios geopolíticos. Os dois países têm produções complementares e alguns produtos chilenos, como o salmão, foram impactados pela tarifa de 10% imposta pelos Estados Unidos e tendem a ficar mais baratos no Brasil — efeito que pode ser anulado pela reforma tributária, que classificou o pescado como produto de luxo.
Depolo aponta um dos grandes avanços do ponto de vista de integração comercial entre Brasil e Chile que é o corredor bioceânico. “Acredito que até dezembro do próximo ano a rota rodoviária que vai ligar os dois países deve estar estar 100% operacional do ponto de vista da infraestrutura”, diz o embaixador.
Esta é a primeira parte da entrevista com Sebastián Depolo Cabrera. A segunda parte, mais focada em questões políticas, será publicada na próxima semana.
Como o senhor avalia o estado atual das relações comerciais entre Chile e Brasil?
A relação comercial Chile-Brasil está em muito bom estado, com grande potencial de crescimento. A visita presidencial do presidente Gabriel Boric a Brasília, em abril deste ano, teve um forte componente comercial e reafirmou o compromisso dos dois países com o livre comércio.
Chile e Brasil têm um intercâmbio comercial muito importante. O Brasil ocupa o posto de terceiro principal parceiro comercial do Chile, e o Chile é o oitavo destino das exportações brasileiras. Embora sejamos um país pequeno — com 19 milhões de habitantes —, temos uma economia muito aberta, com acordos de livre comércio com países que representam mais de 90% do PIB mundial.
Quais setores têm maior potencial de crescimento nesse intercâmbio comercial?
Estamos numa estratégia de diversificação em três dimensões. Primeiro, diversificação territorial: historicamente, nossa relação esteve concentrada no Sul e Sudeste brasileiros. Hoje queremos chegar com mais força ao Nordeste e ao Centro-Oeste, especialmente com a implementação da rota bioceânica (um corredor rodoviário que vai conectar os oceanos Atlântico e Pacífico, ligando Brasil, Paraguai, Argentina e Chile).
Segundo, diversificação de produtos. Temos a pauta tradicional — vinho, frutas — já consolidada no Brasil, mas queremos agregar valor e incluir pequenas e médias empresas. Nosso acordo de livre comércio de última geração incorpora capítulos como comércio e gênero, permitindo que empresas lideradas por mulheres participem do comércio internacional.
E a terceira dimensão?
A diversificação em serviços. Temos a maior indústria de cobre do mundo e desenvolvemos muito conhecimento em serviços e tecnologias para mineração, manejo de águas, resíduos e gestão sustentável. A ProChile tem um escritório em Belo Horizonte há dois anos justamente para trazer esses serviços tecnológicos ao Brasil.
Também estamos exportando aplicativos de software para sensores e controles automáticos desenvolvidos graças ao tamanho da nossa indústria do cobre, que representa 35-40% da produção mundial.
Como funciona a estratégia do Chile como plataforma de investimentos para o Brasil?
Para o Chile, o Brasil é de longe o principal destino dos nossos investimentos estrangeiros. Mas também queremos que empresários brasileiros invistam no Chile, não apenas como destino, mas como plataforma de exportação.
Acabamos de atualizar nosso convênio com o Mercosul sobre regras de origem de produtos, o que facilita muito a agregação de valor em cadeias regionais. Oferecemos ao Brasil acesso com tarifa zero às principais economias da Ásia-Pacífico através do Chile, especialmente aproveitando nossa rede de acordos de livre comércio nessa região.
As tarifas americanas criaram novas oportunidades para o comércio bilateral?
O Chile tem acordos com os Estados Unidos há mais de 25 anos, com tarifa zero. Sem mediação ou negociação, nos impuseram tarifa de 10% em média, o que não compartilhamos por princípio.
Mas isso abre oportunidades limitadas, porque o Chile é um mercado pequeno. Não conseguiremos absorver tudo que não pode entrar competitivamente nos Estados Unidos. Por isso insistimos na ideia do Chile como plataforma, não apenas como mercado.
Como as pautas exportadoras de Brasil e Chile se complementam?
Nossas pautas são muito complementares e competem pouco entre si. Chile tem clima “mediterrâneo”, não tropical, então produzimos coisas diferentes ou em estações diferentes.
Temos contraestação em muitos produtos. Por exemplo, o Chile produz a palta — que vocês chamam de abacate — em um período do ano e o Brasil em outro. A mesma coisa com salmão e truta no sul do Chile, devido ao frio da Patagônia, que não podem ser produzidos em climas tropicais.
Não somos produtores de café nem cacau, como outros países latino-americanos. Esta complementaridade nos permite enfrentar juntos mercados mais complexos, aproveitando a imensidão produtiva do Brasil e a estratégia logística de abertura comercial do Chile.
Qual é o impacto real da ameaça de tarifar em 50% o cobre chileno?
Temos dois tipos de cobre: refinado, de alto valor agregado, que é o mais exportado para os Estados Unidos, e concentrado, de baixa refinação.
O concentrado vai basicamente para a Ásia, então não é afetado pela tarifa americana. Nos Estados Unidos exportamos principalmente lâmina de cobre já elaborada, que tem tarifa muito menor — até agora se mantém em zero.
Esse cobre refinado é 80% do que exportamos aos Estados Unidos e é insumo fundamental para a indústria sustentável. Um carro elétrico consome três vezes mais cobre que um tradicional, então muitas indústrias americanas precisam do nosso cobre para aumentar sua competitividade.
As políticas tarifárias americanas mudaram a estratégia comercial do Chile?
Até agora, não. Assim como o Brasil, há 15-20 anos os Estados Unidos vêm perdendo peso relativo em nossa economia. Hoje exportamos muito mais e de forma mais diversificada para a Ásia do que para os Estados Unidos.
Em alguns produtos específicos, como salmão, pode haver impacto maior. Mas o impacto geral das tarifas não nos afetou tanto no imediato. O problema maior está nos contratos de longo prazo, que podem ser reavaliados pelos importadores americanos.
O salmão chileno pode ficar mais barato para os brasileiros?
Sim, pode ficar mais barato. Mas temos outro problema: na nova reforma tributária brasileira, o salmão está na alíquota de produto de luxo, o que pode encarecer o custo para o consumidor brasileiro no futuro.
Nosso excedente de produção está ampliando a cadeia de distribuição no Brasil. Há salmão chegando hoje ao Nordeste e Centro-Oeste, onde antes não chegava. Nossa venda estava muito concentrada no Sudeste, especialmente em São Paulo, pela colônia japonesa que consome muito salmão.
Como vai funcionar o corredor bioceânico na prática?
Os estudos dos quatro países — Argentina, Brasil, Paraguai e Chile — mostraram que o tempo para transportar um produto do centro-oeste brasileiro até um destino na Ásia pode ser reduzido em até 17 dias se puder ser embarcado em um porto no Chile. Há também redução de custos, pois os portos do norte do Chile podem ter fretes mais baratos que o Porto de Santos.
Não se trata de tirar carga de Santos, mas permitir que o excedente saia mais rápido pelo Pacífico. O grande desafio é a integração: distinguir entre o hardware (a rota) e o software (integração de aduanas, polícias, vigilância sanitária).
Que infraestrutura ainda precisa ser construída?
Há duas grandes obras em construção: uma ponte entre Brasil e Paraguai, com 45% de execução, e cerca de 200 quilômetros de rodovia dentro do Paraguai.
No Chile, estamos ampliando os portos de Antofagasta e Iquique. Diferentemente do porto de Chancay no Peru, que é um grande porto novo, o Chile tem uma rede de portos bem integrada logisticamente, alguns especializados em mineração, outros multipropósito.
Quando estará concluída essa integração bioceânica?
No primeiro semestre de 2026 deve estar concluída a ponte, e no final de 2026 a rodovia no Paraguai. Então, até dezembro do próximo ano, o corredor estaria 100% operacional do ponto de vista da infraestrutura.
Temos até 2026 para completar a integração de aduanas, polícias e controles sanitários. O interessante é que as obras continuaram apesar das mudanças de governos, mostrando compromisso além das afinidades políticas.
Os territórios subnacionais — estados, províncias, municípios — veem isso como estratégia de desenvolvimento para seus espaços. Será uma ótima notícia para o Centro-Oeste brasileiro, Paraguai, norte argentino e norte chileno.