Ezequiel Neves (1935-2010) inventava entrevistas, elogiava efusivamente artistas produzidos por ele (uma clara desafinada ética) e se vangloriava de viver quase integralmente com os dois pés na jaca. É uma trajetória da pesada, impossível de ser levada a sério dentro do jornalismo. Mesmo assim, o dono desse currículo acabou sendo consagrado como o mais influente crítico de rock da história do Brasil. Era celebrado pelos artistas e leitores por sua verve ácida e bem-humorada. Agitador cultural, apadrinhou bandas como o Made in Brazil e Barão Vermelho. No caso do Barão, foi o principal responsável pelo lançamento do grupo, tornou-se amigo íntimo de Cazuza e co-autor de sucessos como Por que a gente é assim?. Sua trajetória será lembrada no documentário Ninguém pode provar nada — A inacreditável história de Ezequiel Neves (Giros Filmes e Ton Ton Filme), que será lançado na 27a edição do Festival do Rio, em sessões agendadas para os próximos dias 5, 6 e 7. A direção é do cineasta Rodrigo Pinto.
Nascido em Belo Horizonte, Ezequiel se envolveu com o circuito teatral mineiro antes de migrar para o jornalismo. Na imprensa, começou a trabalhar em São Paulo e resolveu mudar para o Rio de Janeiro depois de aceitar trabalhar nos anos 70 na edição nacional da revista Rolling Stone. Ali, passou a assinar a coluna musical Toque. Craque no bom humor, fazia notas chamando Alice Cooper, então no auge da fama, de “a Dercy Gonçalves do rock”. Ele passou a vida falando sobre detalhes de sua experiência no Festival de Woodstock — nem nunca ter estado lá. O documentário a respeito de sua carreira singular lembra também uma entrevista de Ezequiel com Keith Richards totalmente inventada pelo jornalista, que era fã incondicional dos Rolling Stones, a ponto de assinar matérias como Zeca Jagger.
O crítico reservava doses de mau humor apenas para o chamado rock progressivo, gênero que costumava detonar dizendo que carregava a síndrome de “penteadeira de bicha”. Segundo ele, os excessos instrumentais dessa turma eram comparáveis aos badulaques exagerados colocados sobre o toucador dos gays (ele mesmo era um gay assumido). Sobre a música clássica, fonte de inspiração dos roqueiros progressivos, desabafou certa vez: “prefiro uma guitarra mal tocada a um naipe de violinos afinadíssimos”.
Para o crítico, bom mesmo era o rock básico, como dos Stones. Por isso, encantou-se com a pauleira do Made in Brazil, grupo paulistano nascido sob forte influência do som de Jagger, Richards e cia.. Ezequiel produziu o álbum clássico da banda, Jack o Estripador, lançado em 1976. Mas o grande sucesso comercial dele enquanto produtor ocorreu mesmo com o Barão Vermelho, que descobriu quando trabalhava na gravadora Som Livre.
Com uma fita-demo do Barão nas mãos, teve que insistir muito para .que o chefe da Som Livre, João Araújo, apostasse na banda. O executivo relutou em assinar o contrato, pois temia que o negócio ficasse marcado pelo nepotismo: afinal, o cantor do grupo era Cazuza, seu filho. João acabou cedendo e Ezequiel iniciou a produção do primeiro disco do Barão. Ao mesmo tempo, escrevia “reportagens” com elogios rasgados aos seus pupilos na revista Somtrês. Para Ezequiel, o rock da banda era ‘demencial”.
Nas sessões de gravação, passava a maior parte do tempo dormindo ou dançando na cabine de som, sem se importar muito com os detalhes técnicos. Na divulgação, incansável, presenteava jornalistas com os discos e os convidava para shows. Mesmo mal gravado, o álbum lançado em 1982 recebeu elogios da crítica. Na VEJA, Okky de Souza saudou os estreantes como “os mais rebeldes e irrequietos descendentes de Rita Lee”.
Ezequiel seguiu ao lado de Cazuza quando ele decidiu partir para a carreira-solo, assinando parcerias como Exagerado, mas sem nunca abandonar os amigos do Barão. Na luta do cantor contra o vírus HIV, acompanhou-o de perto nas diferentes fases de tratamento, incluindo em uma ida para Boston, nos Estados Unidos. Ezequiel morreu em decorrência de um câncer no cérebro no dia 7 de julho de 2010, mesma data em que se completavam duas décadas da morte de Cazuza.